Gnose e Gnosticismo: ontem e hoje (por Daniel Placido)
Gnose
e Gnosticismo
“Gnose”
e “gnosticismo”, eis palavras que causaram, e ainda causam, desconforto,
receio ou tremor, especialmente quando são ouvidas por espíritos demasiado dogmáticos e reacionários. Afinal, o gnosticismo, que traz consigo a gnose, foi considerado a “mãe de todas as heresias”, não é mesmo? De nossa parte, esses
termos soam quase como uma canção de liberdade, não obstante impliquem
em muitos desafios teóricos e conceituais.
Primeiramente, o que é gnose? Ela pode ser conceituada como o conhecimento interno do divino, a superar assim a dualidade entre sujeito e objeto, e que corresponde a uma salvação interior ou libertação da alma humana. Como disse S. Hoeller, a gnose é o conhecimento absoluto do absoluto, e isso nos afasta um pouco do campo epistemológico da mera religião ou mesmo da filosofia. Nesse sentido, no texto gnóstico-árabe de Monoimus é dito:
Desistindo de procurar por Deus, a criação e coisas como essas, busques por Ele dentro de ti e aprendas quem é que agrega em Si absolutamente todas as coisas dentro de ti, e digas: “Meu Deus, minha mente, minha compreensão, minha alma, meu corpo”. E aprendas de onde vem tristeza, a alegria, o amor, o ódio, a vivacidade involuntária, a sonolência involuntária, a raiva involuntária e afeição involuntária; e se tu investigares corretamente estes (pontos), O descobrirás, unidade e pluralidade, em ti mesmo, de acordo com aquela partícula, e saberás que Ele encontra a conexão como sendo tu mesmo. [1]
Ainda
que a gnose esteja historicamente ligada ao gnosticismo, ambos são independentes
entre si, porquanto existiram e existem formas de gnose em diversas tradições,
como o hinduísmo, o judaísmo, o Islã, o budismo, entre outras, sem que elas tenham
muitas afinidades com uma cosmovisão similar à do gnosticismo. Dessa forma, inclusive,
podemos considerar que, nesses casos, a gnose é o aspecto interior ou esotérico de cada uma
destas tradições (jnana, Cabalá, sufismo, tantrismo), sem as quais elas não subsistem vivas, exceto enquanto
caricatura e epígono.
Já
o gnosticismo, por sua vez, corresponde a um conjunto de movimentos e grupos
espirituais que floresceram na Antiguidade tardia, especialmente em âmbito
cristão, e que perfilhavam uma interpretação esotérica de textos
filosófico-religiosos diversos, além de uma proposta de iniciação de seus
seguidores, com uma tendência ora ao dualismo, ora ao monismo, em termos
cosmológicos e antropológicos, mas não necessariamente teológicos ou éticos. O gnosticismo foi
considerado heterodoxo pela Igreja de Roma e banido, paulatinamente, de suas
fileiras, assim como seus textos e doutrinas em geral foram proscritas.
Apesar da suposta complementação exterior-interior, desde
tempos antigos a gnose e suas manifestações têm sido tolhidas pelas forças
institucionais mais radicais da religião exotérica, não só à luz do caso mais óbvio da
proscrição do gnosticismo (e suas variantes como o maniqueísmo e o catarismo), e
sim de diversas tradições gnósticas para além dele. Doutores da Lei da crucificaram
Al Hallaj; assassinaram Sohravardî; silenciaram Mestre Eckhart; queimaram
Marguerite Porete e Giordano Bruno; perseguiram Jacob Boehme; consideraram Swedenborg
e William Blake doidos varridos; e assim por diante.
Pintura de William Blake |
Todavia,
não obstante toda tentativa de abafamento e silenciamento, o século XX foi um
momento particularmente importante para o renascimento tanto da gnose quanto do
gnosticismo. Um dos fatores propulsores deste processo foi, obviamente, a
descoberta de uma biblioteca de textos gnósticos em Nag Hammadi, no Egito, na
década de 1940, que, ademais, permitiu um conhecimento mais rico da diversidade
interna do cristianismo primitivo, inclusive com a presença de formas
espirituais que eram relativamente livres e abertas.
Mas
não só isso. Atualmente, a própria religião institucional tem passado por uma
longa e profunda crise interna, diante de questões levantadas pelo processo de
secularização da vida moderna, questões que desafiaram suas estruturas por
vezes fossilizadas, sem oferecer algum tipo de gnose como contrapartida,
excetuando-se casos específicos de ordens e confrarias religiosas que ainda
mantiveram algo de uma vida mística, porém de forma geralmente ascética e
isolada do mundo. É natural que, diante
disso, muitos espíritos, ansiosos por liberdade e por experiências internas, tenham
se voltado para movimentos como a Contracultura e a Nova Era, as quais pretendem
ser, válidas ou não, formas alternativas de espiritualidade.
Gnosticismo
e Nova Era
Como
Hakim Bey considera, a Nova Era tem elementos de revolta contra o sistema político-moral
atual, contudo, ela também foi capturada pela lógica mercantilista capitalista,
tornando-se mais uma espécie de gaiola de aço, porquanto virou parte daquilo
que deveria combater: um movimento acomodado junto a uma indústria de produtos
e serviços “esotéricos”.
Por
outro lado, estudiosos como G. Filoramo tentam relacionar Nova Era e gnosticismo
como se fossem quase sinônimos. Apesar
de reconhecer diferenças entre a Nova Era e o gnosticismo, Filoramo insiste em
chamar o novoerismo de "neognosticismo", pois ele propõe a busca de
experiências espirituais internas e livres (ou seja, uma gnose) sem mediações
institucionais. Ora, isso parece insuficiente para uma comparação séria, e apesar
de podermos encontrar analogias de elementos da Nova Era com qualquer coisa,
inclusive com o gnosticismo, pois a Nova Era é um movimento muito eclético e
heterogêneo, analogias não são reais concordâncias.
A
nosso ver, não se trata realmente de uma nova forma do gnosticismo, mas de uma coisa diferente.
Ora,
a Nova Era é evolucionista, otimista e não dá ênfase ao problema do mal, o que
já a afasta bastante do campo do gnosticismo. Como ponderaram H. Jonas, H. Corbin
e outros estudiosos, o gnóstico é marcado pelo sentimento perene de exílio, e
não há evolução possível na cosmovisão gnóstica para um mundo crítico, fruto de
um erro colossal e pré-humano, a não ser uma fuga vertical em direção à origem.
Por
mais que a liberdade e pluralidade do gnosticismo antigo, assim como a busca de
um conhecimento interior, lembrem vagamente a atual Nova Era, falamos de coisas
distintas aqui. O gnosticismo antigo estava em geral calcado na ideia de uma
tradição secreta, e a gnose, ainda que interna, dependia de ritos esotéricos
para ser efetivada. Ela é a tentativa de conhecer a origem e o destino humanos,
não esse supermercado de teorias e modas da Nova Era.
A
integração do gnóstico no Pleroma, para o gnosticismo, pressupõe um processo de
crise e transformação profundas, não essas paródias de coachs
novaeristas, que iludem as pessoas sobre a facilidade da vida espiritual, com
baboseiras “quânticas” ou gratiluz - tudo por um precinho camarada, claro. Arriscamo-nos
a dizer que o gnosticismo não só é diferente como é oposto ao novoerismo, pois
em sua essência está a insatisfação e a revolta contra a crença ingênua na
validade de uma ordem cósmica boa e perfeita, isenta de aporia.
Se
existe realmente algum tipo de "neognosticismo" ou de “nova gnose”,
ele deve ser buscado primeiro em movimentos e pensadores esotéricos que
realmente dialogam, cada um a seu modo, com o gnosticismo antigo e medieval,
como é o caso de R. Abellio, R. Steiner, C. Jung, G. R. S. Mead, P. Deunov, R.
Nelly, H. Corbin, H. Bloom, entre outros.
Características
da Nova Gnose
Por
fim, se tentássemos apontar algumas características possíveis da gnose do
século XXI, de uma nova gnose, seriam:
a)
Como Raymond Abellio afirmou, uma diferença da nova gnose em relação à gnose
antiga é que aquela deve ser marcada pela consciência, ou seja, o que antes era
assimilado de um modo mais ou menos inconsciente através das tradições será
agora trazido ao plano da reflexão consciente e fenomenológica, o que implica
em uma diálogo ou dialética entre a gnose e a cultura contemporânea,
marcadamente a filosofia e a ciência, ao contrário de visões fundamentalistas
anti-modernas.
b) A nova gnose, como considera H. Bloom, será
individual e livre de instituições. A nosso ver, isso não significa algo
totalmente anti-institucional, pois a formação de pequenas comunidades e grupos
para compartilhar experiências e perspectivas, de forma mais ou menos
espontânea e livre, é totalmente sadia e benvinda, desde que esses grupos não
se tornem seitas, igrejinhas ou algo do gênero.
c)
A nova gnose não será ocidental tampouco oriental, mas transcultural, capaz de
assimilar todas essas formas de maneira aberta, sem por isso cair no
sincretismo ou no ecletismo. Como colocou H. Corbin, o Ocidente e o Oriente não
são meras categorias geográficas, e sim espirituais, e é na busca do Oriente
espiritual que os gnósticos de todos os tempos e lugares, e de agora também, se
encontram. Como Corbin teria dito uma vez, parafraseando Marx, “hereges de
todos os países, uní-vos”.
d)
A nova gnose não consiste em um engajamento político ingênuo, nem na bobagem de
“imanentização” do divino na Terra, tampouco de buscar uma revolução
materialista pela luta de classes, mas ela não pode deixar, por sua natureza e
proposta, de colocar-se à serviço das forças da transformação moral e
espiritual da sociedade, no sentido da liberdade plena, do pluralismo cultural
e religioso, ainda que entenda que precise ir além do “jogo do Demiurgo”. Isso
os gnósticos antigos já faziam ao dar voz às mulheres em suas comunidades ou ao
rejeitar toda forma vazia de hierarquia institucional.
1- Fonte: https://arvoreetrinta.com/2019/08/19/um-pensamento-gnostico/
La
religión gnóstica: el mensaje del Dios extraño y los comienzos del
cristianismo, Hans Jonas, Siruela, 2000.
Manifeste
de la nouvelle gnose, Raymond Abellio, Gallimard, 1989.
Caos:
terrorismo poético & outros crimes exemplares, Hakim Bey, Conrad, 2003.
Gnosticismo,
Stephan Hoeller, Nova Era, 2005.
Presságios
do Milênio, Harold Bloom, Objetiva, 1996.
Monoteísmos
e dualismos: as religiões de salvação, Giovanni Filoramo, Hedra, 2005.
The
Dramatic Element Common to Gnostic Cosmogonies of the Religions of the Book,
Henry Corbin, Studies in Comparative Religion 14/3-4 (1980): 199-221.
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