Filosofia Perene, Renascimento e sincretismo (por Daniel Placido)

 

O Renascimento foi um momento decisivo para a formulação da Filosofia Perene pois era um lugar de encontro sincrético  de diversas tradições com o cristianismo, como o hermetismo, o neoplatonismo, a cabalá judaica, o orfismo etc.  Nesse quadro, tem peso especial Gemistos Plethon, um filósofo neopagão de origem bizantina que chamou a atenção dos latinos para o valor de Platão e que este estava de acordo com Zoroastro, o primeiro sábio e legislador antigo. 

Na esteira de Plethon, mas mobilizado pela ótica cristã, temos Ficino, que traduziu o Corpus Hermeticum e começa a falar de prisca theologia, colocando Hermes Trismegisto como primeiro teólogo mais antigo. Hermes Trismegisto já era fruto de um certo sincretismo, uma mistura do Hermes grego com o Thot egípcio, um sábio ou profeta pagão que já era discutido por antigos como Lactâncio, Cícero e Agostinho. No período do Renascimento, curiosamente, sua imagem podia ser encontrada dentro de uma igreja católica, mais precisamente no piso da Catedral de Siena (imagem), no século XV, junto com as Sibilas e outras referências do paganismo antigo! Mesmo Ficino alterando depois essa ordem, talvez por influência de Plethon, colocando Zoroastro como teólogo mais antigo, o objetivo ainda era encontrar uma conexão fácil de estabelecer entre zoroastrismo e cristianismo, devido aos Reis Magos da Bíblia, passando pelo platonismo.

Como ponderam Moshe Idel e Antoine Faivre, no Renascimento o conceito de Filosofia Perene terá sua definição expressa, assim como seu auge, pois era, justamente, um período de encontro e sincretismo de tradições helenísticas, como o neoplatonismo e hermetismo,  tradições ligadas ao monoteísmo, como a Cabalá, com a disponibilidade de materiais e tradições diversas que colocavam para os eruditos um desafio de síntese intelectual e religiosa. Não é estranho vermos tantos autores distintos como Plethon, Ficino, Pico della Mirandola, Patrizi, Bruno, Steuco, entre outros, procuram definir uma Filosofia Perene ou algo similar a esta.


Hermes no piso da Catedral de Siena, século XV

De um ponto de vista histórico e social, existe primeiramente a disponibilidade desses materiais circulando, às vezes em várias versões, que vinham da Antiguidade, como o Corpus Hermeticum, os Oráculos caldeus, os textos órficos,  ou do Medievo, como os textos cabalísticos (sem falar do hermetismo árabe), sejam em traduções, sejam através da possibilidade de aprendizado das línguas originais em que foram escritos. E ainda figuras como a de Cosme de Médici, um mecenas disposto a caçar manuscritos raros, assim como bancar alguém qualificado como Ficino (que chegou a estudar com bizantino emigrado João Argyropoulos) para traduzir tais materiais.  E existem figuras realmente cosmopolitas como a de Plethon que, apesar de suas críticas ao monoteísmo e a Aristóteles, era capaz de atravessar barreiras e fronteiras culturais, sendo reconhecido por Ficino, de forma justa, como um dos responsáveis (junto com Cosme de Médici) pelo renascimento do platonismo na época e por sua migração de Bizâncio para Florença. 

É justamente nesse momento que Ficino começa a falar de uma "prisca theologia", conceito que trabalhou e retrabalhou ao longo de toda sua carreira intelectual. Ficino claramente foi influenciado por Proclo, Diógenes Láercio, Diodoro Sículo, Lactâncio e Plethon em momentos diferentes de sua formulação. Ficino no Pimander (sua tradução do Corpus Hermeticum) coloca Hermes como teólogo mais antigo, seguido por Orfeu, Aglaofemo, Pitágoras, Filolau e Platão. Mas, mais tarde, em obras como De Christiane Religione e a Teologia Platônica, coloca Zoroastro como o teólogo mais antigo, seguido por Hermes, Orfeu, Aglaofemo, Pitágoras e Platão. 

E Ficino continua a reelaborar essas linhagens, mas sempre preocupado com o cristianismo, pois era um padre, a ponto de imaginar que Platão havia quase compreendido a Trindade, mas não pode fazê-lo porque era pré-cristão, enquanto os neoplatônicos, posteriores a Cristo e influenciados (supostamente) por João, Paulo e o Pseudo-Dionísio (na verdade, autor posterior), apesar dos subsídios teóricos, falharam nisso, sendo o cristianismo a continuação legítima do zoroastrismo e do platonismo ao mesmo tempo! Aqui o sincretismo parece a construção de um vitral multicolorido, de montar uma rede de tradições, linhagens e ideias, ainda que com pouca fidelidade histórica.

Ora, o que move Ficino é, primeiramente, valorizar o cristianismo como  continuação, ainda que superior, das tradições anteriores, que o prepararam mas foram superadas por ele. Segundo, Ficino vê na prisca theologia uma modelo que une filosofia e teologia, fé e razão, que servia, em sua época, para combater, por um lado, o materialismo e o racionalismo na filosofia, que ele vê isso expresso entre alexandristas e averroístas,  e por outro lado, combater uma certa ignorância filosófica que reina nos meios religiosos da época. Ficino era filho de médico e havia estudado medicina, e se via como um curador das mazelas espirituais da sociedade de sua época, tão distante assim, ainda que muito mais aberto e amplo, do que Savonarola.

Já a Filosofia Perene é um conceito formulado ulteriormente por Agostino Steuco, bibliotecário da Vaticana que leu Ficino, Pico della Mirandola, os textos herméticos e materiais vários, e reformula a questão em sua obra Sobre a Filosofia Perene. Para Steuco a Filosofia Perene é a ciência divina que Adão recebeu diretamente de Deus, que Noé ainda recebeu antes do Dilúvio e que chegou a diversos povos e culturas, ainda que o povo judeu, por ser supostamente o povo escolhido e o primeiro a dominar a escrita, foi privilegiado nessa recepção.

Steuco acredita que com o tempo, com devir histórico, a preocupação dos homens com as coisas mundanas e seu afastamento das coisas espirituais, gerou um obscurecimento, fazendo com que a Filosofia Perene original fosse deturpada, aparecendo então concepções filosóficas equivocadas, segundo ele, como a transmigração da alma,  a eternidade do mundo e o arianismo (do qual até Ficino é acusado por ele). Steuco acreditava então que só com o advento histórico do cristianismo a Filosofia Perene original pode ser restituída, com as concepções corretas sobre a Trindade, a criação do mundo, o destino da alma etc., que são aquelas defendidas pela Igreja católica.

 A obra de Steuco, assim, parece muito mais apologética e cristocêntrica do que a de Ficino, que bem ou mal era filosoficamente um platônico, favorável à magia e  à astrologia, e sempre  cuidadoso em suas críticas a Platão e aos platônicos. Mas nem ele pode escapar do sincretismo típico da época, afinal o próprio cristianismo foi uma religião que foi influenciada pelo judaísmo, pela filosofia helênica e pela cultura romana.


*Para saber mais sobre o assunto, recomendo meu artigo "A Filosofia Perene e o Renascimento", publicado na coletânea "A Gnose ocidental", São Paulo: Instituto Civitas Solis, 2024. Pode ser adquirida aqui: A GNOSE OCIDENTAL - Instituto Civitas Solis

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O que é o Vedanta? (por Daniel Placido -versão corrigida)

Manifesto para uma educação integral

Sobre Aristóteles, Deus e a teologia (por Daniel Placido)