Filosofia como modo de vida (por Daniel Placido)
À luz dos estudos de figuras como Pierre Hadot, Giovanni Reale, Michel
Foucault, entre outros, podemos considerar que a filosofia na Antiguidade, de Sócrates a Plotino,
passando pelos cínicos, estóicos e epicuristas, consistia,
fundamentalmente, em um modo de vida. Não havia, nesse contexto, uma cisão
entre teoria e prática, pensamento e ação, sabedoria e vida, mente e corpo. O
estudo de disciplinas filosóficas como a lógica e a metafísica, por exemplo,
era acompanhado pari passu por práticas espirituais e exercícios
meditativos interiores que, através do autoconhecimento e do cuidado de si,
promoviam uma forma de vida integrada, na qual todas as dimensões do ser
humano eram articuladas em função de sua atuação ética no mundo.
Escola de Aristóteles, Spangenberg.
Ao
trazer essa concepção para o presente, sem, porém, discutir aqui as razões
históricas mais profundas desta mudança cultural, considero relevante destacar
que, embora a universidade proporcione o contato com textos e ideias dos
grandes pensadores da tradição filosófica, existe um aspecto essencial
frequentemente negligenciado na filosofia universitária contemporânea: a
dimensão prática. Nota-se, com frequência, um predomínio da erudição teórica em
detrimento de sua aplicação existencial. Filósofos acadêmicos acumulam vasto
conhecimento conceitual, expressam-se com excelência oral e escrita, produzem
teses, livros, artigos e conferências de elevado nível. São verdadeiras esteiras
rolantes de produção acadêmica que deixariam, decerto, um Henry Ford orgulhoso!
No entanto, permanece a questão: qual o
impacto efetivo desse saber sobre a vida concreta? De que serve a inteligência
especulativa quando está dissociada da maturidade emocional, da clareza
interior, da força de caráter? Qual o valor do discurso filosófico quando
desprovido da vivência direta do que se afirma?
É
oportuno lembrar que o termo filosofia designava originalmente “amor pela
sabedoria”, ou seja, uma sabedoria voltada ao ser humano, à ética e ao bem
comum. Sócrates, exemplo vivo desse ideal, constitui uma figura radicalmente
distinta da do filósofo acadêmico moderno. Sua prática consistia em interpelar
os cidadãos atenienses com perguntas inquietantes, desestabilizando certezas consolidadas
para trazer a lume a fragilidade de muitas convicções cotidianas. Ao ouvir do
oráculo de Delfos a máxima “Conhece-te a ti mesmo”, Sócrates vislumbrou o
princípio da verdadeira sabedoria: não um acúmulo de saber pelo próprio saber,
mas um compromisso com a verdade interior e existencial. Compromisso modesto,
pois implica em assumir a própria ignorância.
Diante
disso, eis uma questão atualíssima e premente: como resgatar essa dimensão
prática, formativa e autognóstica da filosofia sem cair na banalização
característica de discursos de autoajuda, muitas vezes promovidos por figuras
ligadas ao coaching ou ao pseudo-espiritualismo mercadológico? Como
evitar que a filosofia seja reduzida a uma série de sentenças e esquemas
simplificadores, desprovidos de densidade crítica? O desafio reside em
compreender que o processo filosófico de autoconhecimento é, por natureza,
complexo, sinuoso e árduo. A filosofia, como uma mosquinha socrática zunindo no
quarto fechado, deve incomodar a todos, a começar pelo modo de vida burguês. Trata-se, sem dúvida, de
um caminho difícil, amiúde repleto de ambiguidades, contradições e revisões
permanentes, em suma, um percurso que pode durar toda uma vida e, por isso
mesmo, inesgotável. Não obstante, os benefícios de percorrê-lo são maiores do
que os riscos, a meu ver.
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