A Filosofia Perene e o Tradicionalismo de R. Guénon (por Daniel Placido)

 (Este texto aproveita trechos de um artigo que escrevi para a Revista Hermetismo)

 

Através da obra de Marsílio Ficino (1433-1499) surgiu, no Renascimento, em um ambiente sincrético de encontro de tradições e filosofias, a noção de “prisca theologia” (FAIVRE, 2000; IDEL, M., 2002).  Ficino, influenciado por autores platônicos como Proclo e Gemistos Plethon, considerou que existia uma teologia antiga, veiculada por sábios como Zoroastro, Hermes, Orfeu, Aglaofemo, Platão, Pitágoras, que estava fundamentalmente em acordo com o cristianismo (FICINO, 1965; FICINO, 2011 b; BLUM, 2001; PLÉTHON, 1858). Apesar de Ficino considerar que outros povos e culturas (dos druidas aos brâmanes) também receberam relampejos da verdade divina, o cristianismo tinha um papel especial dentro do coro das religiões e tradições, representando a verdade divina integral e também uma “pia philosophia” (HANEGRAAFF, 2012; HANKINS, 1990; CELENZA, 2021; EDELHEIT, 2008; MONFASANI, 2002).

Analogamente, o termo Filosofia Perene (Philosophia Perennis) foi utilizado pela primeira vez na obra De perenni philosophia, escrita e publicada em 1542 por Agostino Steuco (1497/98-1548), um humanista católico e bibliotecário da Vaticana. Para Steuco a Filosofia Perene consistia na ciência sobre os mistérios divinos e humanos, revelada à Adão por Deus, antes da queda, e depois disseminada por vários povos e culturas; obscurecida ao longo do tempo, a Filosofia Perene mais tarde foi restaurada pelo nascimento do cristianismo (STEUCHI,  X, 1542).

 A concepção de Filosofia Perene, oriunda do mundo renascentista, perdeu muito de seu brilho e força entre os eruditos da Europa após a contundente contestação filológica da antiguidade dos textos herméticos feita por I. Causabon (HERMES TRISMEGISTO, 2019: 19-20; CELENZA, 2021; 146-147). Não obstante, a Filosofia Perene, sob um viés orientalista, ressurge com força nos meios esotéricos europeus nos séculos XVIII e XIX,  muito em função do trabalho de orientalistas, especialmente de indólogos para os quais os textos hindus antigos eram a fonte primeva de toda as religiões (SEDGWICK, 2004: 40; Cf. CLARKE, 1997).

          No presente texto discorreremos sobre a concepção de Filosofia Perene presente no esoterismo europeu do século XX com enfoque no Tradicionalismo de René Guénon, tributário dessa visão orientalista.

 

Perenialismo ou Tradicionalismo

 

O sincretismo esotérico foi a tônica do pensamento tanto da Sociedade Teosófica quanto do ocultismo inglês e francês do século XIX, e ele terá um crítico feroz e culto na pessoa de René-Jean-Marie-Joseph Guénon (1886-1951), representante máximo da chamada “Escola Perenialista” ou do Tradicionalismo, o qual contempla autores importantes como F. Schuon, S. H. Nasr, A. K. Coomaraswamy, T. Burckhardt, M. Lings, J. Evola, entre outros (ELIADE, 1979).  

Os perenialistas ou tradicionalistas costumavam usar mais a noção de “Tradição” em seus textos, contudo, às vezes, alguns deles utilizam também o termo “Filosofia Perene” ou “Sophia Perennis” (SCHUON, 2002: 107-114; 1993: 1-39; NASR, 2007; HEISER, 2004). Conforme Mark Sedgwick (2004), não obstante sua crítica à teosofia de Blavatsky e ao ocultismo, René Guénon e seus seguidores ainda transitavam sob a influência do paradigma “orientalista” ou “vedantino” da Filosofia Perene, estabelecido pelo orientalista R. Burrow e outros. [1]

René Jean-Marie Joseph Guénon

           René Guénon era formado em matemática e filosofia, e participou inicialmente do movimento ocultista e martinista de Papus, assim como Igreja gnóstica de J. Doinel, na qual colaborou com o pseudônimo de Palingenius. Mesmo em um artigo escrito (1909) em fase ainda embrionária de seu pensamento como “O Demiurgo”, já se nota, ao lado do gnosticismo de Valentino, uma influência do advaita Vedanta de Shankaracharya, anunciando uma perspectiva “perenialista” ao tentar colocar essas tradições distintas em acordo. Certo sincretismo é perceptível na obra ulterior de Guénon, por exemplo, ao tentar aproximar o Vedanta shankariano do sufismo de Ibn ‘Arabî (DICKSON, 2021). Não por acaso, Guénon, ao lado de suas alegadas referências hinduístas, adentrou no sufismo em 1912 e, mais tarde, por volta de 1930, foi viver no Egito como muçulmano (com o nome de 
Abdel Wahid Yahia), onde morre em 1951.

O primeiro livro propriamente “perenialista” de Guénon, Introdução Geral ao Estudo das doutrinas hindus, publicado em 1921, continha, em potência, os tópicos centrais de obras posteriores (GUÉNON, 1987). Essa obra foi rejeitada por orientalistas acadêmicos como Sylvain Lévi, mas obteve recepção positiva - pelo menos durante um tempo - em círculos católicos como o de Jacques Maritain.

A obra de Guénon é vasta, ampla e de difícil leitura devido ao formalismo quase escolástico de seu estilo (GODWIN, 2006: 270-271), que, contudo, não se confunde com o rigor do método acadêmico (HEINRICH, 1997). Trata-se, a princípio, de uma obra teórica, como disse F. Schuon (2002: 125-127), mas, cujo objetivo, vale lembrar, era levar o indivíduo a abraçar uma tradição considerada válida. Dentro da obra guénoniana pode ser observada uma unidade orgânica, a unir eixos como a exposição da metafísica, o simbolismo tradicional, a iniciação, a crítica ao mundo moderno e estudos sobre tradições particulares (RIFFARD, 1996: 71; GUÉNON, 1995a; 1989b). Na impossibilidade de resumir uma obra tão diversa e vasta quanto polêmica em um espaço tão limitado, destacamos um leque de temas, concepções e pressupostos recorrentes nela, esperando que o leitor, caso não tenha feito isto, possa lê-la por si mesmo:

(a)  A Tradição é considerada eterna, supra-histórica e unânime; ela é o raio de conexão constante entre o humano e o divino e expressa-se, historicamente, nas tradições particulares consideradas autênticas. 

(b) A Tradição, em sua manifestação histórica visível, não é oriental nem ocidental mas “polar”, sendo o hinduísmo o que sobreviveu de mais próximo à “Tradição primordial”; do ponto de vista geo-histórico, existem centros iniciáticos secundários, circunscritos e vinculados ao “Centro Supremo”, relacionado, por sua vez, ao mito de Agartha (GUÉNON, 1984c; 1991; BENOIST, 1969: 18-20).

(c) A Tradição reflete-se em tradições particulares, as quais têm divergências e contradições aparentes no nível exotérico da teologia e da legalidade, porém um acordo pleno no nível esotérico ou metafísico. São consideradas tradições autênticas aquelas que se enquadram no critério de “ortodoxia” (a fidelidade ao Princípio único), ficando fora ou em posição duvidosa tradições heterodoxas como o budismo (que Guénon depois aceita) e o protestantismo, sem falar das que são avaliadas como pseudo-tradições ou paródias, como o espiritismo, o ocultismo e a teosofia da Sociedade Teosófica (GUÉNON, 1984c; 1989a).

(d) O simbolismo, os ritos tradicionais e a cadeia iniciática têm uma papel fundamental na transmissão do conhecimento tradicional. A iniciação se divide em mistérios menores, correspondendo ao iniciado alcançar o centro do estado humano, e em realização dos mistérios maiores, que significa o iniciado atingir e atravessar o centro de todos os estados múltiplos do Ser, formando-se assim o símbolo da cruz (GUÉNON, 1984a; 1986; 1995b).

(e) A “metafísica” é diferente da filosofia pura (exemplo, aristotelismo), pois está baseada não só na razão, mas na intuição intelectual. Guénon diferencia ainda o esoterismo/metafísica, que é espiritual (pneumático) e ativo (iniciação), ou seja, corresponde à gnose, do misticismo, que é considerado psíquico e passivo, ou seja, devocional (GUÉNON, 1985, 7-16; 1986; 1984b).

(f) No Ocidente contemporâneo não parece ter sobrevivido nenhuma forma regular e tradicional de iniciação, exceto talvez em alguns ramos da Maçonaria e do Companheirismo. A Igreja católica deveria se unir a Maçonaria, ocupando esta última o papel de esoterismo e aquela o papel de exoterismo, ou, talvez, a “elite intelectual ocidental” deveria migrar para o Oriente e mergulhar em alguma tradição viva nesse âmbito (GUÉNON, 1983).

(h)  Guénon, a partir de uma interpretação da teoria hindu dos ciclos cósmicos, que prevê um decaimento inevitável da humanidade em todo final de ciclo, identifica na modernidade ocidental sinais - já presentes no passado em algum grau - do advento de  uma era apocalíptica e perturbadora, a Idade Sombria ou Idade de Ferro (Kali Yuga), com o pulular de manifestações contrárias à Tradição, afetando as próprias religiões e tradições, manifestações expressas, segundo ele, no mundo moderno através do individualismo, do laicismo, do democratismo, do cientificismo, do evolucionismo, do materialismo filosófico e da quantificação de todos os aspectos da vida social e cultural (GUÉNON, 1977; 1984c).

(i) Em obras específicas, Guénon faz ainda uma crítica sistemática ao que considera “desvios modernos” em relação à espiritualidade tradicional: ao espiritismo, questionando a origem dos supostos fenômenos espíritas, e sustentando que a reencarnação espírita (ideia defendida por Lessing antes) era uma interpretação errônea da doutrina tradicional da transmigração [2]; e  à teosofia de Blavatsky e seus discípulos (que ele chama de teosofismo, pejorativamente), não só expondo as supostas polêmicas e contradições envolvendo este movimento esotérico, como questionando suas bases teóricas, suas interpretações das tradições orientais e ocidentais, bem como seus pressupostos  reencarnacionistas e evolucionistas (GUÉNON, 1989a; 2010).

(j) Em contraposição ao pensamento político e social moderno, Guénon sustenta que a hierarquia social e política tradicional é uma imagem da hierarquia espiritual, expressa, historicamente, nas castas (Índia) e nos estamentos europeus medievais, e na ideia da submissão do poder temporal à autoridade espiritual (simbolicamente, o par formado por Merlin-Rei Arthur); essa concepção encontra ecos, com algumas diferenças, em Platão (República) e na teoria da tripartição indo-europeia (Dumézil) (GUÉNON, 2011; 1991).

            Em conclusão, a Filosofia Perene é uma concepção recorrente no pensamento filosófico, religioso e esotérico do Ocidente, a partir do Renascimento, e especialmente depois do século XIX. Mesmo que não se acredite na existência de um fundo único subjacente a todas as tradições religiosas e esotéricas, não há dúvida de que elas têm pontos de conexão e convergência que demandam, no mínimo, uma constante comparação e diálogo, sem tirar a beleza singular de cada uma delas, e para isso temos uma grande contribuição nas obras dos  “perenialistas” como Guénon e outros.

 

 Notas

1- Cf. BENOIST, 1969: 118-123, HOLMAN, 2011: 33, 47; CLARKE, 1997; DICKSON, 2021.

 2- O que é, a nosso ver, um dos muitos grandes equívocos de René Guénon. Este nega a possibilidade de repetição do mesmo estado, daí a suposta impossibilidade da reencarnação, mas além de ser um argumento frágil metafisicamente, o fato é que não há dúvida de que várias tradições ocidentais e orientais defenderam o retorno da alma humana (ou de aspectos dela) a esta terra, como é o caso do hinduísmo, budismo, neoplatonismo, gnosticismo, maniqueísmo, Cabalá, entre outras.

 

 Bibliografia

 

1. Obras sobre Filosofia Perene e Renascimento

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2. Obras sobre Perenialismo

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ELIADE, M. (1979). Ocultismo, bruxaria e correntes culturais. Belo Horizonte: Interlivros.

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3. Outras

CLARKE, J. J. (1997). Oriental Enlightenment: The Encounter Between Asian and Western Thought. London, New York: Routledge.

HERMES TRISMEGISTO. (2019). Corpus Hermeticum. São Paulo: Polar editora.

HIXON, L. (1997). O retorno à Origem. São Paulo: Cultrix.

HOLMAN, J. (2011). O retorno da Filosofia Perene: a Doutrina Secreta para os dias de hoje. São Paulo: Pensamento.

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RIFFARD, P. A. (1994). Dicionário do Esoterismo. Lisboa: Teorema.

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VERSLUIS, Arthur. Perennial Philosophy. Minneapolis: New Cultures Press, 2015.


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