Gnosticismo: pessimismo ou emancipação social? (por Daniel Placido)

 

É impressionante quantas leituras e interpretações distintas o gnosticismo (ou melhor, gnosticismos) suscita, e, como era de se esperar, elas não estão isentas de pressupostos ideológicos dos próprios intérpretes. Para alguns – como o conservador L. F. Pondé-, os gnósticos eram anti-humanistas, pessimistas e dualistas, tendo levado ao extremo a máxima jesuânica "O Meu Reino não é deste mundo", hipostasiando o dualismo platônico. O Deus verdadeiro é completamente outro-mundano; Ele não queria ter criado este mundo nem o fez, sendo a criação realizada por derivações divinas, Sophia ou então o Demiurgo, a partir de um erro catastrófico, uma queda cósmico-espiritual vertiginosa. Os gnósticos não acreditavam no mundo nem em uma antropologia ingênua e otimista, segundo tal leitura. O gnóstico seria, fundamentalmente, um exilado querendo voltar para sua pátria verdadeira, e não alguém preocupado com esta terra estranha e um tanto madrasta.

Ora, para começar a conversa, quando falamos de "dualismo" gnóstico, depende muito de qual corrente ou escola “gnóstica” temos em mente. É provável, o único verdadeiro dualista era Marcion de Pôntico, o qual nem sempre é considerado um genuíno gnóstico pelos especialistas (Harnack, ao contrário de Mead, não o considera). Valentino e seus discípulos, por exemplo, não defendiam um dualismo extremo. O “Evangelho de Tomé” (contendo elementos gnósticos) afirma: “o Reino está espalhado pela Terra, e os homens não o vêem” (logion 113).Os maniqueus, gnósticos oriundos da Pérsia antiga, nunca disseram que o mundo era mau ou a criação foi obra de um Demiurgo malévolo/trapaceiro nem nada do gênero, apesar de sustentarem o dualismo teológico entre os princípios do Bem e do Mal; para os maniqueus o mundo era obra de um Espírito bom e consequente, e apesar das artimanhas de Arimã, o Espírito das Trevas, mantiveram-se na natureza sementes de Luz, ocultas, esperando por redenção. Mesmo os cátaros medievais, considerados realmente “dualistas”, amiúde oscilavam entre um dualismo absoluto e um dualismo moderado.

Por outro lado, a leitura conservadora e pessimista parece ter captado bem algumas das sutilezas da antropologia sugerida pelo gnosticismo. A antropologia gnóstica, em sentido bem generalista, destoa de algo que depois vai ser construído pelo humanismo moderno e suas variações, porquanto na concepção gnóstica o homem pleno não é o homem enquanto ser histórico, biológico ou social, nem individualizado, e sim o Homem Verdadeiro, um arquétipo divino, a ser atualizado através da gnose, do conhecimento divino e intuitivo. E nem sempre os gnósticos eram igualitaristas, ao menos da perspectiva soteriológica: às vezes, a salvação era para poucos, apenas para os eleitos e perfeitos, e não para os psíquicos ou carnais – ainda que virtualmente a base da hierarquia fosse aberta a todos.

Essa leitura pessimista, contudo, acaba pintando os gnósticos como os mais terríveis conservadores e niilistas, avessos ao mundo e à política, mas ignora, deliberadamente ou não, que, com ou sem pessimismo, o gnosticismo representou um elemento relevante e claro de emancipação social nas épocas em que apareceu. Por exemplo, em várias primeiras igrejas e comunidades gnósticas, ao contrário do patriarcalismo da corrente proto-romana, as mulheres estavam em pé de igualdade com os homens; na verdade, todo ser humano, na visão gnóstica, é um andrógino, e deve reunir-se com seu duplo ou gêmeo divino. Isso não significa que os gnósticos eram "feministas" antes da letra, pois inclusive associavam o elemento feminino com algo malévolo, mas tal concepção não os impediu, no aspecto prático-social, de tratar homens e mulheres em igualdade funcional dentro de suas comunidades religiosas. Na Igreja maniqueísta, por exemplo, as mulheres desfrutavam de grande prestígio e tinham um papel de destaque. Com o catarismo medieval, como disse R. Nélli, não só a questão do gênero, mas a própria igualdade política e social, dentro dos anseios de mudança da época, foi defendida, contra a Igreja romana, enriquecida, dissoluta e claramente aliada aos interesses dos setores mais tacanhos da nobreza.

Na verdade, desconfiar ou colocar em suspeita o mundo e as formas pueris de otimismo não implica, em momento algum, no desarmamento político-social. Ninguém precisa acreditar que o homem ou o mundo podem ser literalmente perfeitos para atuar socialmente, e tentar transformar, mesmo que de modo parcial e limitado, a realidade. Se o mundo é devir, ele está se fazendo e refazendo a cada instante. O mundo hoje não é de ontem, nem o de antanho. O Reino não é deste mundo, nunca será, porém isso não deve nos impedir de vivê-lo e buscar melhorá-lo dentro do possível, com realismo. Por isso o apelo caritativo de Jesus: o mundo não é e jamais será perfeito, não obstante podemos -- através da caridade e da justiça --  ajudar uns aos outros, aliviar sofrimento do próximo o quanto for possível, aqui e agora mesmo.  

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