Nota sobre a questão da filosofia oriental (por Daniel Placido)

Giovanni Reale, contra a tese de uma influência oriental no nascimento da filosofia grega, enfatiza a originalidade dos gregos da Jônia na criação do que veio a ser chamado de filosofia, representando uma ruptura cultural drástica e singular sem paralelo em outros povos. Ele reconhece a influência oriental em outras áreas (como a matemática) e que a teoria dessa influência sobre a filosofia grega já existia entre os antigos, mas que ela seria muito mais fruto de uma suposta “decadência” da cultura helênica no período tardo-antigo, em contraste com o período clássico.

Contra a visão de Reale e outros que vão nessa linha, existem trabalhos histórico-filosóficos que evidenciam as influências do pensamento oriental sobre a filosofia grega nascente (de Walter Burkert a F. G. Bazán), o que tem a ver, antes de mais nada, com relações de cunho político e econômico que sempre existiram entre esses mundos, e isso é suficiente para o questionamento das tradicionais leituras eurocêntricas que negam ou minimizam indevidamente tais influências.

É daqui que partimos. Se os gregos foram em vários sentidos originais, a construção da sua identidade cultural não pode ser vista como uma unidade fechada, mas como uma estrutura flexível, dinâmica e capaz de incorporar influências exógenas, como muitas outras culturas ao longo da história, dentro de um processo de intercâmbios político-culturais, e é claro que a filosofia está relacionada com isso. Não é à toa que a cultura grega sempre absorveu e reconstruiu elementos provavelmente “estrangeiros” em suas raízes, como o orfismo e o dionisismo, que inclusive se relacionam intimamente com a filosofia. Nesse sentido, uma filosofia como o neoplatonismo não é uma mera repetição ou decadência da cultura clássica sob influência do processo de helenização, mas um desenvolvimento verdadeiro e criativo do passado impulsionado justamente pelo contato com as culturas orientais que, nesse sentido, deixam de representar uma dicotomia irreconciliável com a cultura grega. Não é verossímil pensar que alguém como Plotino seria vítima de fantasias orientalistas e não tinha noção da grandeza e originalidade da cultura grega: se ele teve interesse em aprender a filosofia dos persas e indianos, é porque, possivelmente, entendia que, afinal, por mais originais que fossem os gregos, a razão não era exclusividade deles e que existiam culturas mais antigas que tiveram vislumbres de racionalidade e mereciam por isso a mais alta consideração.

Como mencionamos acima, na Antiguidade, histórias sobre viagens de Pitágoras e Platão para o Oriente eram comuns, tanto quanto sobre o interesse desses filósofos gregos na sabedoria dos egípcios, indianos ou persas, além de ser recorrente a ideia de que a filosofia grega era derivada do mundo oriental. Como o próprio W. Jaeger uma vez notou, os estudiosos da filosofia antiga não podiam mais ignorar isto: as alusões e referências da Academia platônica antiga ao Oriente. Esse vínculo platonismo-Oriente é ainda mais explícito no caso do neoplatonismo dos séculos III a VI EC, filho do sincretismo helenístico. Plotino, como citamos, procurou contato com a filosofia dos indianos e persas, ainda que sem sucesso. Porfírio aludiu à “teosofia” dos indianos. Jâmblico disse que a filosofia de Platão e Pitágoras era derivada de textos de Hermes, egípcios. Proclo e Damáscio fizeram referência à “teologia dos bárbaros” (caldeus, assírios, egípcios, persas e outros) e buscavam um acordo com ela. É evidente que esses filósofos antigos viam nessa teosofia ou teologia do Oriente muito mais do que religião ou mística: ela continha uma estrutura filosófico-racional, sem a qual não valeria a pena dispendiar tempo em compreendê-la, além de buscar uma concordância com ela.

O próprio neoplatonismo (e não é esse o único indício) evidencia ainda que a filosofia, para os antigos, não era uma atividade exclusivamente racional, mas um saber global, também intuitivo ou supra-racional, relacionado com a espiritualidade e a mística, tal como é geralmente vista a filosofia no Oriente, o que não impede que neste último tenham existido escolas filosóficas de cunho fortemente lógico e até materialistas, como a escola charvaka na Índia.

Os que tentam desqualificar a ideia da existência legítima de uma filosofia oriental não podem negar também, sem afrontar tanto a história quanto a razão, que a filosofia de origem grega penetrou no Oriente médio no Medievo, e que a filosofia islâmica (árabe e persa) não só assimilou essa filosofia grega como a desenvolveu de modo original, levantando questões e problemas novos a partir de seu mundo teológico-religioso (como a questão da unicidade divina), o que fez com que fosse respeitada no Ocidente latino. Alfarabi, Averroes, Avicena e outros filósofos islâmicos eram tratados como interlocutores pelos filósofos da Europa medieval.

Mais tarde, a visão simpática para com o pensamento do Oriente, já presente nos neoplatônicos antigos, é revivida na filosofia da Renascença, novamente em busca construir um acordo da filosofia de origem grega com fontes orientais (caldeias, persas, egípcias) e ambas com o judaísmo e cristianismo, também de origem oriental. Depois disso, com as traduções diretas (especialmente de material de origem árabe, persa e indiana) feitas pelos orientalistas europeus a partir dos séculos XVIII-XIX, a filosofia oriental voltou a provocar interesse em ocidentais como Goethe, F. Schlegel, Emerson, Schopenhauer e outros.

Todavia, independente de usos terminológicos, de origens e conexões históricas, como apontou uma vez o papa João Paulo II, se definirmos a filosofia como uma atividade desenvolvida pela razão humana que visa encontrar respostas flexíveis para questões básicas sobre o mundo e a vida do homem nele, não há dúvida de que existe algo equivalente no Oriente, seja na África, na Arábia, Pérsia, China, Japão ou Índia, ao longo da história, por mais originais que consideremos os gregos, que, todavia, sempre assimilaram elementos de outras culturas.

Abandonado o eurocentrismo ingênuo que tem prevalecido na história da filosofia, não há dúvida de que, hoje em dia, qualquer curso de filosofia sério deve, além do comparativismo Ocidente-Oriente, incluir, sob uma perspectiva universal e histórica, autores como Nagarjuna, Laozi, Shankarachrya, Ibn Arabî, Sohravardî, Molla Sadra e muitos outros, pois estes eram tão filósofos quanto Platão, Plotino, Agostinho ou Mestre Eckhart.

 

Comentários

  1. Infelizmente, ainda prevalece na academia (não na de Platão, graças a Zeus .. rs) a visão do Pe Reale.

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    1. Verdade, e olha que Reale foi um homem sábio e sério, mas de equivocou nisso.

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