Notas sobre Filosofia Perene (por Daniel Placido)

I- Proponho três eixos básicos para identificar a Filosofia Perene: 1- junção ou harmonização entre filosofia e teologia; 2- concordância entre tradições, dentro de um arco maior ou menor de amplitude; 3- existência de uma linhagem ou linhagens que veiculariam essa sabedoria perene. O item 1 é consideravelmente recorrente, já os itens 2 e 3 são mais raros e específicos, e realmente caracterizam autores e correntes que podem ser relacionados com a Filosofia Perene, como Proclo ou Sohravardî. Como exemplo, citarei Ficino no capítulo XVIII do seu "The Philebus Commentary" , de 1469:

"But as the ancient theologians said - those whom Plato followed, Zoroaster, Hermes Trismegistus, Orpheus, Aglaophemus, Pythagoras - the vain belief in many gods arose universally from the many names of the Ideas. But the Christian theologians, Dionysius the Areopagite and St. Augustine, also maintain that the Ideas must be they accepted as true and that they ware so accepted by Plato."
(trad. de Michael J. B. Allen)
 
É visível aí a junção entre filosofia e teologia (item 1), já que aquela aparece ligada à figuras religiosas, assim como o acordo da tradição grega com tradições orientais, e de ambas com o cristianismo (item 2), além da presença uma linhagem que veicula essa tradição (item 3).

II- Certos livros ampliam tanto o leque de autores  supostamente consoantes com a Filosofia Perene, que, assim parece, todo filósofo ou místico teria defendido isso pelo menos uma vez na vida.  Para traçar uma rota mais precisa da Filosofia Perene, sob diferentes vertentes e leituras, faria a seguinte divisão de alguns autores que considero mais relevantes neste longo percurso: a) antigos: Fílon, Numênio, Porfírio, Jâmblico, Proclo e Damascio; b) medievais: Miguel Pselo, Sohravardî e Sabin; c) renascentistas e modernos: Plethon, Bessarion, Ficino, Pico della Mirandola, F. Patrizi, A. Steuco e Leibniz; d) a partir do século XIX: Emerson, Blavatsky, Guénon, Schuon, Huxley e Ken Wilber. Tem muitos outros, mas esses são os essenciais, a meu ver.


III - Se as tradições que estão de acordo conformam  a Filosofia Perene (item 2), é absolutamente desnecessário pressupor uma unanimidade entre elas para compreender que compartilham um substrato ou núcleo comum;  uma árvore possui muitos galhos e ramos sem deixar de compartilhar tanto o mesmo tronco quanto a raiz.

Algumas tradições vão escolher o dualismo como estratégia narrativa -- zoroastrismo-- porque têm como objetivo expor a dramaticidade que fundamenta o mundo e o lugar deslocado do homem nele; em contrapartida, tradições como o Vedanta (o qual, na realidade, já apresenta uma diversidade interna de abordagens e escolas) vão dar ênfase à unidade do Espírito subjacente a tudo que existe. Outras tradições, como o sufismo e a teosofia cristã -- também internamente diversas --, apresentarão uma profusão exuberante de imagens e símbolos, verdadeiras teofanias, enquanto tradições como o Vedanta  (sem negar sua diversidade interna) perfilharão uma posição mais apofática, a partir de um repertório imagético menos rico.

Ora, as tradições são expressões parciais ou reflexos especulares da contínua revelação do divino, e justamente por isso podem apresentar o mesmo tema sob ângulos distintos sem cair em contradição  e sem que seja preciso estabelecer uma hierarquia entre elas, como se uma fosse mais "completa" do que a outra.

IV- Tenho visto nas redes sociais associações de Henry Corbin com o "perenialismo" de René Guénon. É preciso prudência ao  considerá-lo um "perenialista", até mesmo um "simpatizante". Ora, Corbin, apesar de sua longa colaboração e amizade com S. H. Nasr, uma vez "surtou" com este último por causa de Guénon, cuja obra não apreciava a ponto de praticamente não citá-la. As razões de tal antipatia pelo guénonismo não são claras, mas podem estar relacionadas com o fato de Corbin ter sido luterano, de ter partido da filosofia moderna para construir sua metodologia e de ter sido bastante influenciado pela teosofia alemã, temas que Guénon criticava, nem sempre com muita pertinência, ou pouco conhecia. Corbin tinha maior apreço pelos livros de Schuon, não por acaso muito mais cuidadoso do que Guénon ao abordar tais assuntos. Inversamente, Guénon escreveu uma vez uma resenha positiva da monografia de Corbin sobre Suhrawardi, um de seus primeiros trabalhos como islamólogo.

Se existe alguma afinidade concreta entre Corbin e os perenialistas, ela está possivelmente no trabalho comparativo entre tradições, o que, sem dúvida, ambos faziam com maestria, mas provavelmente sob métodos distintos. É verdade, Corbin constantemente indicava paralelos entre teósofos ocidentais (como Boehme e Swedenborg) com orientais (Ibn Arabi, Molla Sadra, ismaelitas), e era capaz de relacionar, por exemplo, o zoroastrismo com a tradição nórdica (item 2). Todavia, seu campo de atuação parecia estar mais restrito às tradições monoteístas e seus respectivos esoterismos, cuja raiz comum era simbolizada -- para ele --pelo Santo Graal. Não pretendo dogmatizar a respeito, contudo, se existe algum tipo de perenialismo em Corbin, ou melhor, de teosofia, essas observações acima não podem ser ignoradas.

 

Comentários

  1. Parabéns pelo blog! Já está nos favoritos...

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  2. Um texto excelente! Destaque para a "linhagem" de perenialistas, desde os antigos, como Fílon de Alexandria até os contemporâneos, como Ken Willber!

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