Notas sobre J. R. R. Tolkien (por Daniel Placido)
Sou um amante da obra de J. R. R. Tolkien, conquanto estou longe de ser um profundo conhecedor dela, por isso escrevo estas notas com a pretensão de um dia desenvolvê-las mais adequadamente; agradeço de antemão possíveis críticas e comentários, desde que sejam civilizados e tempestivos.
I- Tolkien era profundamente versado na literatura arthuriana,
inclusive chegou a compor um poema aliterativo sobre o Rei Arthur além de
editar a lenda medieval “Sir Gawain e o Cavaleiro Verde”. Ele também era um
conhecedor da mitologia celta (galesa e irlandesa), apesar de seu intuito ser a
criação de uma mitologia própria para a Inglaterra, o que gerava nele uma certa
tensão interna (FIMI, 2021). De qualquer forma, à luz desse contexto, não é
surpreendente que o par Aragorn-Gandalf lembre bastante o par Arthur-Merlin
(HALL, 2012). Nos termos da teoria da tripartição indo-europeia, Aragorn
encarna o grande rei, representando o poder temporal, e Gandalf encarna o
sacerdote (druida), representando a autoridade espiritual, tal como
Arthur-Merlin. Todavia, não podemos reduzir a inspiração de Gandalf à figura de
Merlin: ora, a construção tolkeniana de Gandalf inspirou-se também na figura de
Odin enquanto velho forasteiro, a partir de um cartão postal que chamou a
atenção de Tolkien (STANTON, 2002). Ademais, Gandalf como um Maiar é uma
espécie de entidade angélica cristã, a qual, não obstante seu imenso poder e
sabedoria, respeita o livre-arbítrio, apenas inspirando as
pessoas e demais seres na retidão (idem), enquanto Merlin estaria mais próximo
de ser uma figura de natureza demoníaca ou telúrica.
II- Como é sabido, a interpretação teológica agostiniana da
questão do mal influenciou profundamente a visão de Tolkien em obras como “O
Senhor dos Anéis” (KLAUTAU, 2007). Sauron é um servo derradeiro de Melkor (uma
espécie de diabo ou anjo caído), e o anel de poder forjado por aquele corrompe
a tudo e todos que encontra: nem mesmo um guerreiro valoroso como Boromir ou o
poderoso mago Saruman (um Maiar) são capazes de resistir ao seu poder terrível,
enquanto Gandalf, Galadriel e Aragorn não ousam portá-lo pois, decerto,
acabariam por sucumbir à sua atração maligna. Cabe então a um humilde hobbit,
Frodo, carregar o anel para destruí-lo no mesmo fogo em que foi forjado, sob
inúmeras tentações e provações. Percebemos aqui o tema cristão da exaltação de
humildes, citado por Tolkien em uma carta ao poeta W. H. Auden: "... eu
mesmo vi o valor dos Hobbits, ao colocar terra debaixo dos pés do “romance” e
ao fornecer questões para o “enobrecimento” e heróis mais dignos de elogios do
que os profissionais... suponho, para falar em termos literários, somos todos
iguais diante do Grande Autor, qui deposuit potentes de sede et exaltavit
humiles [que depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes]".
Apesar de Frodo chegar a seu destino, com a ajuda de outro hobbit,
o fiel amigo Sam, no final o herói também sucumbe à tentação, incapaz de
destruir o anel. Como na visão cristã nenhuma criatura pode vencer o mal
sozinha, é necessária uma intervenção providencial através um ser pequeno e até
desprezível, o Golum, que, em sua sede cega de poder, acaba, paradoxalmente,
por destruir o anel e extirpar o mal por ele representado.
III- Tolkien, além de dar uma dimensão mítico-teológica para sua
obra, não era um entusiasta das propaladas maravilhas do mundo moderno.
Sabidamente, ele foi na juventude influenciado pelo socialista romântico
William Morris, e, em sua vida pessoal, tinha aversão por carros, aviões e
outras invenções modernas, devido tanto a seu barulho quanto a seu uso
belicoso. Tolkien ainda associava as máquinas e objetos técnicos modernos a uma
forma de magia negra, responsável pela destruição da natureza e por inúmeras
outras perturbações (CRISTELLI, 2013). Isso é visível, por exemplo, na figura
de Saruman, mago desviado que destrói florestas e a mata nativa com suas
geringonças técnicas infernais, e no final acaba punido pela revolta dos Ents,
a natureza personificada (Idem).
IV- Existe uma discussão em curso sobre a relação de Tolkien com a
tradição esotérica. Na vida pessoal, como Tolkien era um católico conservador,
é possível dizer que ele era avesso ao ocultismo, inclusive ficou bastante
irritado com seu amigo C. S. Lewis, quando este se aproximou de um intelectual
com propensões ocultistas; nesse sentido, seria um pouco difícil associar
Tolkien com qualquer forma de conhecimento ou visão esotérica. Todavia, como
considera Joscelyn Godwin (GODWIN, 1981), muitas vezes um autor pode ser
inspirado de forma inconsciente pela Tradição esotérica, ainda que não se
identifique conscientemente com esta, o que pode ser o caso de Tolkien, pois
ele era, sem dúvida, versado em diversas mitologias e tradições próximas do
esoterismo, colocando muito delas em suas obras. Em minha singela opinião sobre esse assunto, valeria a pena fazer algum estudo comparativo entre, por
exemplo, a cosmogonia do “O Silmarillion” e a cosmogonia teosófica de J. Boehme
e R. Steiner, pois vejo semelhanças entre elas que merecem um aprofundamento.
Bibliografia
Klautau, Diego G. (2007). “O Bem e o Mal na Terra-Média - A
filosofia de Santo Agostinho em O Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien como
crítica à modernidade”. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. (mestrado em ciências da religião)
Hall, Mark R. (2012). "Gandalf and Merlin, Aragorn and
Arthur: Tolkien's Transmogrification of the Arthurian Tradition and Its Use as
a Palimpsest for The Lord of the Rings," Inklings Forever:
Published Colloquium Proceedings 1997-2016: Vol. 8 , Article 6.
Cristelli, Paulo (2013). J. R. R. Tolkien e a crítica à
modernidade. São Paulo: Alameda.
Godwin, Joscelyn (1981). Tolkien and the Primordial
Tradition: https://hermetic.com/godwin/tolkien-and-the-primordial-tradition
Stanton, Michael N. (2002). Hobbits, elfos e magos.
Rio de Janeiro: Frente.
Fimi, Dimitra (2021). A rich world to be immersed in:
interview with Dimitra Fimi: https://tolkienista.com/2021/02/26/a-rich-world-to-be-immersed-in-interview-with-dimitra-fimi/2/#:~:text=Confira%20a%20nossa%20entrevista%20com,fadas%2C%20fantasia%2C%20mitologia%20etc.&text=Em%20dois%20anos%20(setembro%20de,Dr.
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