Agostinho e Plotino: cristianismo e neoplatonismo (por Daniel Placido)
O filósofo cristão Santo Agostinho (354-430 EC) recebeu grande influência do platonismo ou neoplatonismo, a ponto de dizer nas Confissões que ninguém aproximou-se tanto dos cristãos quanto os platônicos, porquanto estes teriam vislumbrado a presença do Logos-Verbo no universo, ainda que não encarnado -- conforme o prólogo de São João -- na figura divino-humana de Jesus Cristo. Agostinho, gravemente enfermo em seus derradeiros dias, segundo Possídio, “consolava-se com a sentença de um sábio, que dizia: ‘Não é sábio quem pensa que é grande coisa caírem madeiramento e pedras, e morrerem os mortais'" [1]. Esse sábio era Plotino (c. 205-270 EC), e a passagem citada está nas Enéadas I, 4, 7. Assim, o mais ilustre e influente Pai da Igreja, próximo à morte, rendeu um merecido tributo à sabedoria platônica e "pagã" que havia estudado na juventude.
É ainda sob inspiração plotínica que provavelmente Agostinho elaborou sua ética. Plotino entendia o "mal" como o limite (negativo) do transbordamento da processão a partir do Uno, o esvaecimento desta difusão ontológica, estando relacionado, em certo sentido, com a “matéria”. Agostinho, por sua vez, manteve a ideia plotínica do mal como "nada" para combater o dualismo maniqueu, mal para o qual o homem se voltava através do pecado e da perversão da sua livre-vontade, tese que, naturalmente, não pode ser encontrada em Plotino.
Claro, existem muitas e enormes diferenças entre os pensamentos de Agostinho e
Plotino, pois, se aquele partiu do platonismo, acabou por criar uma filosofia
ou teologia cristã e própria. Não temos como aprofundar o assunto
no momento, mas, por ora basta dizer que Agostinho defendia a criação "ex
nihilo" do mundo, por um ato livre e insondável da Vontade divina, enquanto
para Plotino o mundo era eterno; a mística agostiniana dependia da atuação da
Graça sobrenatural, e não de uma elevação místico-intelectual como a mística
plotínica; em Agostinho não havia metempsicose/metemsomatose como em Plotino
etc.
De qualquer forma, a influência de Plotino e do (neo)platonismo sobre
o cristianismo vai muito além de Agostinho ou de outro filósofo, como o Pseudo-Dionísio,
o Areopagita; inclusive, muito além do campo da filosofia "stricto
sensu".
Segundo Cirne-Lima [2], na arquitetura cristã é perceptível uma influência
da filosofia neoplatônica, sobretudo a partir do Renascimento. Os mestres
arquitetos transplantaram a estrutura ternária e circular da realidade conforme
o neoplatonismo para a arquitetura cristã, fato evidenciado nos diversos
chafarizes em cascata presentes em várias igrejas, como, por exemplo, o
chafariz na praça da Basílica de S. Pedro, em Roma.
Ora, para expressar metaforicamente as três hipóstases plotínicas
em processão, a saber, primeiro o Uno (Hén), que gera o Intelecto (Noûs), e
depois a Alma (Psyché), que gera todas as coisas do universo, assim como o desejo
nostálgico de todos os seres para ascender e retornar à sua origem, o Uno,
formando um círculo, não haveria imagem melhor do que a de um chafariz em cascata,
com a água em transbordamento pelas quedas, e voltando para a primeira queda
através de um canal interno [3].
Amigo leitor, encerro com uma dúvida: voltará o tempo em que tanto
a arquitetura e as artes, quanto a própria filosofia, expressarão de novo esta
nostalgia pelo Uno?
Notas
[2] Cf. "Sobre o Uno e o Múltiplo em Plotino", C.
Cirne-Lima,, In: Amor scientiae: festschrift em homenagem a Reinholdo Aloysio
Ullmann, Draiton Gonzaga de Souza (org.), Edipucrs, pp. 95-96 ; C. Cirne-Lima,
"Depois de Hegel", Educs, p. 134.
[3] Cf. O aprendiz do belo: a arte-ética em Plotino, Marcus R.
Pinheiro, In: Mística e filosofia, Idem, Editora PucRJ/Ed. Uapê, p. 82
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