Comentário Enéada I: 8 de Plotino, primeira parte (por Daniel R. Placido)
Esta é a primeira parte de um pequeno comentário que escrevi -- quase um resumo -- sobre o Tratado I: 8 das Enéadas de Plotino, “O que são e de onde vem os males”, a partir da tradução do prof. José Carlos Baracat Jr. Todavia, não se trata de um fichamento exaustivo, pois não reproduzo todos os argumentos e exemplos plotinianos. Plotino caracteriza o mal como privação e o identifica com a matéria, mas isso coloca uma série de nuances e detalhes lógico-metafísicos e cosmológicos, já que é preciso explicar como ele teria surgido e como seria o contrário do Bem, assim como negar que o mundo seja essencialmente mau.
(Daniel R. Placido).
1. Plotino levanta inicialmente esta questão: o que é o mal e qual sua natureza?
Dela, outras surgem: como poderíamos conhecer o mal? O intelecto e a alma são
formas, e assim conhecem de modo formal ou pelas formas: o semelhante conhece o
semelhante. Ora, como conhecer o mal, se ele é a ausência de bem? E como
conceber o mal, se ele não é uma forma? Aparentemente, isso é possível pela
contrariedade: conhecer o bem é de certo modo conhecer seu contrário, ou seja,
o mal. Isso talvez seja possível, conquanto de modo hierarquizado e
não-reversível: as coisas melhores precedem as piores; uma é principial, e a
outra, derradeira; uma é forma, e a outra, privação. Todavia, Plotino deixa
para elucidar depois essa questão, e antes mais nada, vai tratar da natureza do
Bem.
2. O Bem ou Uno é aquilo que todas as coisas desejam, e da qual dependem. O Uno
é autossuficiente, sem carência, absoluto, e doa ou emana de si o Intelecto
(Noûs), a essência, a vida e a Alma do Mundo. O Uno ou Bem não é belo, e sim
hiperbelo; do mesmo modo, está acima do Ser e da essência: é Sobre-Ser,
Sobre-Essência. Quanto ao Intelecto (Noûs), Plotino está aqui falando do
Intelecto universal, e não dos intelectos particulares. O Noûs contém todas as
coisas, é todas elas; apesar de estar só consigo mesmo, ele está com as coisas,
e as contém sem estar contido nelas. Em outros termos, o Intelecto Universal
abarca em si as formas/modelos das coisas, de maneira imediata e ilimitada. Do
Uno procede o Intelecto e a primeira essência, mas ele (o Uno) permanece
sozinho. Já o Intelecto exerce sua atividade, como se estivesse ao redor dele.
E a Alma, como num espelho, vê o Uno através do Intelecto, estando por sua vez
ao redor deste último. Ora, aqui não existe o mal, mas apenas o Bem primeiro (o
Uno), e os bens dele processionados (o Intelecto e a Alma do Mundo). Eis as
três hipóstases plotínicas.
3. Se temos os entes, e o sobre-ente (Uno), o mal não pode estar aí, pois todos
eles são bons. Assim, se o mal “existe”, terá que existir apenas no não-ente,
como uma espécie de “pseudo-forma” do não-ente e misturado com coisas
relacionadas ao não-ente, ou que de algum modo comunguem com o não-ente. O que
entender aqui por “não-ente”? Plotino aponta que é o sensível e suas afecções,
seja o acidente delas, ou seja seu princípio, etc. Podemos caracterizar o
sensível como aquilo que é indeterminado, informe, deficitário, escasso, por
contraste como aquilo que é determinado, formal, auto-suficiente, completo. O
sensível é indeterminado/deficiente, e assim, tudo que dele participa se torna
mau, mesmo não sendo em si mesmo mau. Deve haver um mal primário e um mal
acidental (secundário), assim como há o bem em si e o bem acidental. Assim como
há o imensurável (ou a imensurabilidade) que não está no imensurado, porque se
estivesse no imensurado não seria em si, e se estivesse no mensurado enquanto
mensurado, seria impossível. Portanto, deve
haver o ilimitado e informe por si, e aquilo que é posterior/secundário a ele;
o que é posterior o é por ser mesclado ao ilimitado, por “mirar” nele, ou
ainda, ser produzido por ele. Essa é a “essência” do mal, se é que pode existir
uma essência para o mal.
4. Para clarear o que está em jogo, temos um exemplo de mal não-primário na
natureza dos corpos, que participa da matéria; os corpos têm um movimento
desordenado, além de uma pseudo-forma; destroem-se uns aos outros, e são um
obstáculo para alma. A alma em si não é má, nem toda parte ou tipo de alma é
má. É a parte irracional da alma que recebe o mal, ou seja, a imensurabilidade,
tanto a falha quanto o excesso, donde provém os vícios (como a covardia, falta
de coragem; ou a licenciosidade, excesso de volúpia). A alma irracional
participa da matéria, do imensurável; está fundida a um corpo que tem matéria.
E mesmo a alma racional pode ser obscurecida pela matéria/corpo, voltando-se
para o devir, e contaminando-se como este. Plotino não usa estes exemplos, mas
considero que poderíamos comparar esta relação alma-matéria com o mito da
Medusa, que tornava pedra bruta os que para ela miravam. Plotino aponta que a
matéria torna a alma má, pois a priva do bem ou da luz, como que capturando-a.
Por falar em mito, é clara aqui a influência/ressonância do orfismo em Plotino,
que retoma isto de Platão: o corpo é o sepulcro material da alma. Refém da
matéria, a alma fica na escuridão, olhando para o que não se vê. Em
contrapartida, conforme a ética plotínica, a alma perfeita e pura se inclina
para o intelecto, para esfera inteligível, e se desvia da matéria ou do mal.
nessa suposição de
necessidade metafísica e do valor essencial da realização de todas as formas de
ser concebíveis, da mais elevada à mais baixa, estava obviamente implícita a
base de uma teodicéia; e nos escritos de Plotino e Proclo podemos encontrar já
plenamente expressas as palavras-chave e os raciocínios de King, Leibniz e
Pope...A própria fórmula otimista, na qual Voltaire encontraria o tema de sua
ironia em ‘Candide’, era plotiniana...Aqueles que supõem que o mundo pudesse
ter sido melhor conformado o fazem porque deixam de ver que o melhor mundo
precisa conter todo o mal possível – ou seja, todos os graus finitos
concebíveis de privação do bem, que Plotino admite ser o único significado que
pode ser atribuído ao ‘mal’...” (In: A Grande Cadeia do Ser, Palíndromo, p.
68).
Contudo, esta
interpretação de Lovejoy ainda deixa no ar problemas e dificuldades para os
comentadores, que não temos condições de solucionar aqui; apenas um observação
de passagem, como enfatiza o prof. Baracat Jr, mesmo que aceitemos que o mal
absoluto corresponde à imperfeição absoluta dentro da escala de edução
do Uno, não obstante é paradoxal admitirmos que o Bem, o qual doa aos seres sua
bondade, produza (no final das contas) também o mal (mesmo como privação).
Conforme Plotino diz em outros textos, o universo sensível tem uma função na
estrutura do real. As formas inteligíveis não se afastam do intelecto; não há
emanação nem diminuição da essência intelectual. Assim, as imagens ou razões
formativas das (nas) coisas sensíveis, precisam ser recebidas por um outro, que
é justamente a matéria, seu receptáculo. A matéria é o assento para o ente, apesar
dela mesma ser um não-ente, ou melhor, pura possibilidade, por oposição à forma
ou ato.
Notamos aqui de passagem, conforme os comentários do Prof. Reinholdo Ullmann,
que apesar de identificar a matéria com o mal, Plotino discorda radicalmente (Cf.
Enéada 2: 9) do dualismo extremista de alguns gnósticos, que faz do universo
sensível algo intrinsecamente mau, e toma a matéria como uma substância má.
Para Plotino, o cosmos sensível no conjunto é bom (se visto de um ponto de
vista maior, as imperfeições se justificam), e o mau não é substancial, e sim
privação, a qual se confunde com a matéria mas não com todo o cosmo. O dualismo
platônico é moderado: anti-somático, mas não anti-cósmico como os gnósticos.
(CONTINUA)
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