O Esoterismo e seus invariantes: introdução às concepções de P. Rifard e A. Faivre (por Daniel Placido)

O Esoterismo e seus invariantes: introdução às concepções de P. Rifard e A. Faivre  

(por Daniel Placido*)


O objetivo deste texto é comparar, conquanto de forma breve e introdutória, as leituras do filósofo francês Pierre Riffard e do historiador francês Antoine Faivre (recentemente falecido) sobre os invariantes do Esoterismo, valendo-se, ainda, da crítica feita pelo estudioso norte-americano Arthur Versluis aos dois autores franceses. Esses autores, diferentes em suas perspectivas e referenciais, ainda estão entre os nomes mais expressivos da pesquisa acadêmica contemporânea sobre o Esoterismo, a qual ganhou força e influência nos últimos 40 anos, aproximadamente, além de um considerável refinamento metodológico.

P. Riffard considera que o Esoterismo é uma realidade universal, presente desde a pré-história até a época contemporânea, seja no mundo ocidental, seja no oriental. Ele propõe “invariantes” para caracterizar o Esoterismo, entendidos como “tipos ideais” no sentido weberiano, por assim dizer de variabilidade ilimitada, e não conteúdos (RIFFARD, 1996, pp. 260-311).  Seriam estes os invariantes do Esoterismo compreendido de forma universal:

a) impessoalidade do autor: o esoterismo não tem autor, é impessoal, mas precisa de um “transmissor” (exemplo, a Tradição dos antigos em Platão, “Filebo” 16, c);

b) oposição exotérico e esotérico: oposição entre o profano e o iniciado, é relativa, e às vezes ambígua como um Cubo de Necker;

c) presença do sutil: domínio intermediário entre o físico e o espiritual (por exemplo, o ki ou chi);

d) analogias e correspondências: "o que está em cima é como o que está embaixo, o que está embaixo é como o que está em cima" (exemplo da “Tábua de esmeralda”);

e) ciências ocultas: hermenêutica, escatologia, etc.;

f) artes ocultas: magia, alquimia, astrologia, mânticas, medicina oculta etc.;

g) número: esotericamente pensado (por exemplo pelos cabalistas e pitagóricos);

h) iniciação: experiência de iluminação ou morte e renascimento espirituais (Idem, ibidem).

Não se trata aqui de nenhuma “Tradição universal” (Guénon), tampouco de uma "Doutrina secreta” (Blavatsky) aceita de maneira apriorística, e sim de um modelo “estruturalista”, proposto mediante uma ampla e exaustiva comparação entre os diversos esoterismos ou correntes esotéricas. Afora os invariantes, P. Riffard propõe ainda “constantes” para o Esoterismo, como a disciplina do arcano (segredo), as ocultações, a sintonia, a reversão e os "esoterúmenos" (esses sim conteúdos universais e raros, como, por exemplo, a ideia do Homem Universal). Quanto mais invariantes aparecerem em uma determinada obra, autor, doutrina ou corrente, mais estaremos convencidos de que se trata de um esoterismo autêntico e completo (RIFFARD, 1996, pp. 306-311).

Já o estudioso A. Faivre interpreta o “Esoterismo” (FAIVRE, 1994, pp. 12-16) como algo tipicamente ocidental, sobretudo a partir da época renascentista. Não que ele negue literalmente a existência de algo mais ou menos equivalente ao Esoterismo em determinadas manifestações, não-ocidentais e ocidentais pré-modernas, porém ele acredita que foi no Ocidente, sobretudo após o Renascimento, que este Esoterismo tomou sua identidade e especificidade, ao se afastar do discurso religioso oficial e seguir um caminho em certo sentido marginal.

 A. Faivre propõe estes seis elementos para caracterizar o Esoterismo ocidental e moderno como uma “forma de pensamento”, sendo os quatro primeiros fundamentais, e os dois últimos secundários (Opus cit., pp. 17-24):

a) correspondências: a máxima da Tábua de Esmeralda (“em cima como embaixo...”) é usada como exemplo aqui (pode ser tanto as correspondências entre micro e macrocosmo, como as correspondências entre o macrocosmo e as Escrituras sagradas);

b) natureza viva: a natureza é vista como um livro escrito em caracteres divinos, como uma forma de teofania (exemplos, a Magia renascentista, a Filosofia-da-Natureza dos teósofos alemães, etc.);

c) imaginação e mediações: o conceito da teosofia islâmica de “Mundo Imaginal” (resgatado por H. Corbin) e influente no Ocidente é um exemplo;

d) transmutação: é usado o exemplo da alquimia, das etapas da Grande Obra;

e) prática da concordância: busca de convergências entre duas ou mais tradições esotéricas, quando não todas (típico dos perenialistas);

f) transmissão: em geral o conhecimento esotérico, que se enquadra dentro de uma tradição orgânica, é transmitido do mestre-guru ao discípulo.

A. Faivre comenta de passagem a posição de P. Riffard. Apesar de respeitar a erudição e sagácia de P. Riffard, Faivre argumenta que esta proposta de um Esoterismo universal, desde a pré-história, comum aos antigos egípcios, aos povos ameríndios, entre outros, seria demasiado especulativa e vaga para ser frutífera em termos de pesquisa histórica (Opus cit., pp. 25-27). Faivre reconhece que haveria um acordo entre ele e Riffard em alguns pontos específicos -- o invariante analogias e correspondência com as correspondências, e entre o invariante iniciação com a transmissão --, mas inexiste concordância nos demais itens. Além disso, A. Faivre acredita que este tipo de empreendimento de P. Riffard, sem dúvida ousado e estimulante, seria mais pertinente em áreas como a história da filosofia, os estudos do imaginário ou mesmo da antropologia, mas não dentro de um campo que procura sua especificidade como o da pesquisa acadêmica sobre as correntes esotéricas, sendo esta uma disciplina empírico-histórica, a qual precisa partir de um dado recorte geo-histórico e também das nomeações e fontes historicamente existentes.

Contudo, em um artigo de cunho metodológico, o pesquisador A. Versluis questiona se os seis elementos usados por A. Faivre para delimitar o “Esoterismo ocidental” não seriam demasiado amplos, já que eles podem igualmente ser encontrados -- para exemplificar -- nas escolas budistas mahayana e vajrayana. Versluis acredita que falte um elemento importante para o modelo faivreano: a "gnose" (VERSLUIS, sd).

Já quanto a P. Riffard, A. Versluis, no mesmo artigo citado, comenta que o modelo riffardiano -- sem cair no dogmatismo perenialista -- é profícuo para se comparar inter-culturalmente os diversos esoterismos, e também considera eficiente a abordagem “internalista” riffardiana, em termos práticos de pesquisa, ainda que lhe falte também o elemento da "gnose" (idem).

À guisa de conclusão, esta é então uma discussão ainda em curso, pois a pesquisa acadêmica sobre o Esoterismo é uma disciplina relativamente nova e sob construção, e, assim, permeada por polêmicas e divergências sobre que é o Esoterismo, sua natureza, sentido e alcance.

 

*Publicado na revista 777, n. 18, ano V, março de 2022


Bibliografia

 

FAIVRE, Antoine. O esoterismo. SP, Campinas: Papirus, 1994.

GOODRICK-CLARKE, Nicholas. The Western Esoteric Traditions: a Historical Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2008.

HANEGRAAFF, Wouter, FAIVRE, Antoine, Van der BROEK, Roelof & BRACH, Jean-Pierre. Dictionary of Gnosis and Western Esotericism, Leiden-Boston, Brill, 2006.

KINNEY, Jay (org.). Esoterismo e Magia no mundo ocidental: uma introdução à sabedoria oculta do Ocidente. SP: Pensamento, 2006.

LAURANT, Jean-Pierre. O esoterismo. SP: Paulus, 1995.

MACEDO, Antonio de. O que é esoterismo?, sd. Disponível In: http://www.fraternidaderosacruz.org/esoterismo.htm

RIFFARD, Pierre A. O esoterismo. SP: Mandarim, 1996.

_______________. Dicionário de Esoterismo. Lisboa: Editorial Teorema, 1994.

VERSLUIS, Arthur. What is Esoteric? Methods in the Study of Western Esotericism, sd, Disponível In:

http://esoteric.msu.edu/VolumeIV/Methods.htm

 


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