Transmigração/ Reencarnação nas tradições (compilado por Daniel Placido)
Esta é uma pequena seleção sobre a questão da transmigração ("reencarnação") em diversas tradições espirituais do Ocidente e Oriente, a qual está longe de estar completa; e, naturalmente, cada uma delas demandaria interpretações e comentários, tarefa que deixo para uma futura antologia. Procurei utilizar boas traduções como base. (Daniel Placido)
Tradição Helênica
Empédocles
“Já
eu me tornei outrora rapaz e moça também,
Arbusto e pássaro e peixe mudo a pular do mar.”
(fr.
117 DK = Diógenes Laércio, Vitae philosophorum VIII, 77; Hipólito Rom.,
Refutationes
I, 3 (DK A 31), tradução de Fernando Santoro)
Píndaro
“(...)Sabe também que as almas dos culpados são
Punidas, ao findarem esta vida, se hão
A Zeus muito ofendido, e têm seu júri no Hades,
E o duro tribunal enfim se pronuncia.
Os bons enxergam claros sóis em plena noite,
Como se dia fosse, e, livres da labuta,
Não se escalavram mãos e braços no lavrar
Da terra, ou de salgado mar, em rude cata
Aos alimentos, mas - ao revés - o que respeita
Aos mandamentos sempre vive sem chorar,
Por eleição de Zeus, enquanto que os perjuros
A presa vêm a ser de insanas aflições.
E três encarnações, após terem vivido,
Ou seja noutro mundo ou neste, e hajam assim
a força de viverem longe da injustiça,
Então vão percorrer de Zeus a bela estrada
E de Saturno, e à ilha recebidos são
De todos Bem-Aventurados, que das auras
Do mar se toucam, onde raiam flores de ouro,
As terrestres nas árvores, e ao seio de ondas,
Outras, todas se entrelaçando qual grinaldas,
Onde o frontal e os braços não se apartam mais.
(“Olímpica”, Canto Segundo, Tradução
de Antonio Medina Rodrigues, Fonte:
Heródoto
"Foram ainda os Egípcios que, por primeiro, disseram que a
alma humana é imortal; que, quando o corpo morre, ela vem morar em outro ser vivo, recém-nascido. Disseram ainda que,
depois de ter percorrido (periélthê) todas as espécies terrestres, aquáticas e
aéreas, ela vem novamente a se instalar no corpo humano. E disseram, enfim, que
essas diferentes incursões (periêlysin, migração,
transposição) renascem
(gínesthai) espontaneamente num espaço
de três mil
anos ..."
(História, II, 123)
Pitagorismo
“Eu próprio – disso eu lembro [diz Pitágoras] –, em tempos da
Guerra Troiana, era o Pantoide Euforbo, no peito de quem um dia golpeou o dardo
gravoso do atrida mais jovem: reconheci o escudo, cobertura de nosso lado
esquerdo, recentemente no templo de Juno eubeia em Argos.
Tudo muda, nada morre: o espírito vem e vai repetidamente, e assume
outros membros à revelia; e de um corpo de fera ao de um homem se transporta e
vice-versa, e em tempo algum se extingue. Como a dócil cera em novas figuras se
define, nem ficando qual fora e nem conservando as mesmas formas, muito embora
seja sempre a mesma: assim professo que uma única alma transmigra por variadas
transfigurações.
Portanto, para que a avidez dos ventres não vença a piedade, evitai
– eu advirto – de afligir almas irmãs com nefanda matança! Não sacieis
sangrando o vosso sangue!”
(Ovídio, Metamorfoses, XV, século I EC, In: VIEIRA, B. V. G. Livro
XV (Tradução). In: FURLAN, Mauri; NUNES, Zilma Gesser. As metamorfoses de
Ovídio. Florianópolis: EDUFSC, 2017. p. 661-709.)
“Heráclides Pôntico refere que Pitágoras costumava dizer de si
mesmo o seguinte: que uma vez havia sido Etálides, e que havia sido considerado
filho de Hermes. O próprio Hermes teria lhe dito para pedir o que quisesse,
fora a imortalidade. Ele então lhe pediu para manter, tanto em vida como na
morte, memória dos acontecimentos. Assim, quando vivo lembrava-se de todas as
coisas, e depois de morto conservava as mesmas lembranças.
Algum tempo depois, foi para [o corpo de] Euforbo e [...depois] sua
alma transmigrou para Ermotimo”.
(Diógenes Laércio, Vida de Pitágoras, VIII, 4-5)
“Os devotos de Pitágoras de Samos têm esta história para contar
dele, que ele não era um jônio, mas que, uma vez em Tróia, ele havia sido
Euphorbus, e que ele havia ressuscitado após morte, mas tinha morrido como
relatam as canções de Homero. E dizem que ele se recusou a usar roupas feitas
de produtos de animais mortos e, para guardar sua pureza, absteve-se de toda
dieta de carne e da oferta de animais em sacrifício. Por isso ele não mancharia
os altares com sangue; não, antes o bolo de mel e o incenso e o hino de louvor,
estes dizem que foram as oferendas feitas aos deuses por este homem, que
percebeu que eles acolhem tal tributo mais do que a nota de hecatombe e a faca
colocada sobre a cesta de sacrifício.
Pois dizem que ele teve certamente relações sociais com os deuses,
e aprendeu com eles as condições em que eles têm prazer nos homens ou se
desgostam, e nessa relação ele baseou seu relato da natureza. Pois ele disse
que, enquanto outros homens apenas fazem conjecturas sobre a divindade e fazem
suposições que se contradizem a respeito, - em seu próprio caso, ele disse que
Apolo veio a ele reconhecendo que ele era o deus em pessoa; e que Atena e as
Musas e outros deuses, cujas formas e nomes os homens ainda não conheciam,
também se associaram a ele, embora sem fazer tal reconhecimento.”
(Filóstrato, Vida de Apolônio, 1.1-5, a partir da tradução de F.C.
Conybeare)
Platão
(...) se um homem matar seu pai, terá que ser vítima desse mesmo destino violento pelas mãos de seus próprios filhos nos dias vindouros ou se tiver matado sua mãe, terá que renascer com o sexo feminino e depois de tornar-se mulher adulta será morta pelas mãos de seus próprios filhos..."
(As Leis, IX, tradução Edipro)
Neoplatonismo
“Ele [Proclo] praticava as
reuniões e conferências de oração caldéias, e até empregava a arte de mover os
topos divinos. Ele acreditava nessas práticas, em respostas não premeditadas e
em outras adivinhações semelhantes, que aprendera com Asklepigenia, filha de
Plutarco, a quem exclusivamente o pai dela confiara e ensinava os ritos
místicos preservados por Nestório e toda a ciência teúrgica. ..
Aos 40 anos, ele sentiu que em um sonho havia pronunciado os
seguintes versos: "Aqui está o esplendor imortal, que é supercelestial,
que brotou da fonte consagrada, e de onde jorra uma luz ígnea!"
No início de seu 42º ano, ele parecia estar gritando os seguintes
versos: "Estou possuído por um espírito que sopra em mim a força do fogo,
que, envolvendo e arrebatando minha razão em um redemoinho de chamas, voa em
direção ao éter, e com suas vibrações imortais ressoa nas abóbadas estreladas!
"
Além disso, em um sonho ele viu claramente que pertencia à Cadeia
Hermética; e, com a autoridade de um sonho, ele estava convencido de que era a
alma reencarnada do pitagórico Nicômaco. ”
(Marino de Samaria, Vida de Proclo, 28, pp.15-55, A partir da tradução de Kenneth S. GUTHRIE: http://www.tertullian.org/fathers/marinus_01_life_of_proclus.htm )
“E não se deve descartar
aquele argumento que diz que a razão não olha em cada ocasião o presente, mas
os períodos passados e também o futuro, de modo a determinar a partir daí o
valor dos homens e transformá-los, fazendo dos senhores de outrora escravos, se
foram maus senhores e porque assim lhes convém, e pobres daqueles que
empregaram mal sua riqueza – e não é desvantajoso para os bons serem pobres – e
que aqueles que assassinaram injustamente sejam assassinados injustamente por
parte do executor, mas justamente para a vítima mesma, e que a futura vítima se
encontre com aquele a quem cabia executar o que ela devia sofrer. Pois, com
efeito, não se é escravo por um acaso, nem prisioneiro porque assim aconteceu,
nem se tem corpo agredido a esmo, mas as coisas que agora se sofre são aquelas
que outrora se fez ; e se alguém matou sua mãe, tornado mulher será morto por
seu filho, e se violentou uma mulher, será mulher para que seja violentado. E,
daí, por revelação divina, o nome Adrastéia : pois esta disposição do cosmos é
realmente Adrastéia, realmente justiça e sabedoria admirável.
(Plotino, Enéada III. 2 [47] 13, 1-14, tradução Baracat Jr)
"A metempsicose pode ser observada a partir de afecções congênitas - por que alguns nascem cegos, outros paralíticos e outros enfermos da alma?— a partir do fato de que as almas, que por natureza têm o exercício de suas funções no corpo, não é necessário que, uma vez que saiam do corpo, permaneçam inativas para sempre. Com efeito, se as almas não voltassem aos corpos, elas necessariamente deveriam ser infinitas ou então Deus estaria criando outras continuamente. Mas também não há nada de infinito no mundo - para nada infinito poderia existir no finito - nem pode ser outros acreditam —porque tudo em que nasce algo novo é necessariamente imperfeito—; mas o mundo que vem de o perfeito é consequentemente perfeito."
(Salústio, Sobre os deuses e o mundo, XX)
"...nossa alma, ao ser imortal e da mesma raça que os deuses... é eterna. Ademais, sustentamos que os deuses a enviam aqui abaixo a unir-se a um corpo mortal em diversas ocasiões, cada vez a um [corpo], pela harmonia do universo."
(Gemitos Plethon, Tratado das Leis, preâmbulo)
Outras Tradições
Gnosticismo
“Simão, samaritano, do qual se originaram todas as heresias,
apresenta para a seita esta teoria: tendo comprado em Tiro, cidade da Fenícia,
Helena, prostituta, levou-a consigo nas suas idas e vindas e dizia que ela era
o seu primeiro Pensamento, a Mãe de todas as coisas, e que no princípio teve a
idéia de criar os Anjos e Arcanjos por meio dele. Essa Enóia saída dele com o
conhecimento da vontade do Pai, desceu às regiões inferiores e gerou os Anjos e
as Potências pelos quais, afirma ele, foi feito este mundo. Mas depois de os
ter gerado, eles, por inveja, a retiveram prisioneira, porque não queriam ser
julgados filhos de alguém insignificante. Eles, porém, ignoravamcompletamente
quem era o Pai deles. Enóia, portanto, ficou retida pelos Anjos e pelas
Potências que ela tinha emitido e sofreu toda espécie de afrontas para que não
subisse de volta ao Pai dela até que foi encerrada num corpo humano. Durante
séculos transmigrou, como vaso se derrama noutro, em corpos de mulheres. Entre
outras, ela foi aquela Helena por cuja causa aconteceu a guerra de Tróia, e
assim se entende porque Estesícoro, que falou mal dela nos seus versos, ficou
cego e em seguida recobrou a vista por ter-se arrependido e escrito as chamadas
palinódias em que a exaltava. Na sua transmigração de corpo em corpo, desde o
início, sempre sofreu afrontas e ultimamente se estabeleceu num prostíbulo; ela
seria a ovelha desgarrada.”
(Irineu de Lyon, Contra as Heresias, I, 23: 2. São Paulo: Paulus,
1995)
Maniqueísmo
“...diré igualmente de qué modo las almas son trasvasadas a otros
cuerpos. Ante todo, una pequeña porción del alma es purgada; a continuación, es
trasvasada a un perro, a un camello o al cuerpo de otro animal. Si el alma ha
cometido un homicidio, es trasvasada a cuerpos de individuos que padecen
elefantiasis; si ha cortado la mies, a cuerpos de mudos. Los nombres del alma
son los siguientes: inteligencia, ciencia, pensamiento, reflexión,
conciencia. Los cosechadores que siegan
la mies son comparables a los arcontes que, salidos de la Materia, se hallan en
las Tinieblas desde que se alimentaron de la armadura del Hombre Primordial.
Por ello es necesario que sean trasvasados a heno, habas, cebada, espigas u
hortalizas, para que ellos también sean cortados y cosechados. Y el que come
pan, es necesario que él mismo sea comido, una vez convertido en pan. El que ha matado a un pollo, él mismo será un
pollo; el que ha matado a un ratón, él mismo será un ratón. Si, en cambio, uno
es rico en este mundo, una vez haya salido de su cuerpo debe ser arrojado en el
cuerpo de un pobre, de modo que lleve una vida de errancia y pida limosna y,
tras esto, vaya finalmente a los castigos eternos. Puesto que este cuerpo pertenece a los
arcontes y a la materia, es necesario que el que ha plantado una persea pase a
través de numerosos cuerpos, hasta que esa persea que ha plantado se venga
abajo. Por lo demás, el que se ha construido una casa será dispersado a través
de todos los cuerpos. Si uno se ha lavado en el agua vulnera su alma; y el que
no ha procurado su alimento a los electi será sometido a los horrores de la
gehenna y transmigra en cuerpos de catecúmenos, hasta que realice numerosos
actos de misericordia. Por ello, si disponen de manjares particulamente buenos,
los ofrecen a esos electi53. Y cuando quieren comer pan, antes de nada, rezan
dirigiéndose al pan en estos términos: 6 «Yo no te he cosechado, ni te he
molido, ni te he aplastado con el rastrillo ni te he metido en el horno. Es
otro el que te [lo] ha hecho y te ha traído a mí. Yo te como con toda
inocencia». Y, tras haber dicho estas palabras para sus adentros, responde a
quien se lo ha llevado: «He rezado por ti»; y así éste se va.
Como os lo acabo de decir, si uno ha cosechado, será cosechado, e,
igualmente, si uno ha puesto trigo en la muela, él mismo será puesto en la
muela; si uno ha amasado, será amasado, y si ha hecho cocer el pan, será
cocido; y, por esta razón, entre ellos está prohibido trabajar. Dicen asimismo que existen otros mundos más
allá del que vemos, en los cuales salen los luminares de este mundo una vez se
han ocultado aquí. Dicen también que, si uno camina sobre la tierra, hiere a la
tierra, y que el que agita la mano hiere al aire, pues el aire es el alma de los hombres, de los animales, de los volátiles,
de los peces, de los reptiles y de todo lo que existe en este mundo. Os he
dicho, en efecto, que este cuerpo no pertenece a Dios, sino a la Materia
oscura, y por ello es necesario que sea entenebrecido.”
(Acta Archelai, X (IX) La transmigración de las almas, 1-8, 15, 20
- 17, 27, apud BERMEJO RUBIO, Fernando. El Maniqueísmo: studio introdutorio,
Trotta, pp. 443-445, texto do século IV DC)
“Assim como o corpo é composto de elemento que vêm dos quatro
pontos cardeais, a alma é formada no Mundo Superior pelos quatro ventos que
sopram no Paraíso e formam seu envoltório. É esse envoltório que dá à alma a
mesma forma que tinha na terra.
Se a alma que é colocada aqui embaixo deixa de se enraizar, é
retirada de novo e de novo e é transplantada até que tenha se enraizado. Pois a
alma que não cumpriu sua tarefa na terra é retirada e transplantada outra vez
na terra. Infeliz a alma que é obrigada a voltar à terra para reparar os erros
cometidos pelo homem cujo corpo ela anima! Pois a transmigração é imposta com
um castigo para a alma, um castigo que varia segundo a natureza dos pecados que
a alma cometeu. E toda alma que pecou deve voltar à terra até que, por sua
perfeição, seja capaz de alcançar o sexto grau da região de onde emanou.
Somente as almas que emanaram do lado da Shechiná – o sétimo grau celeste-
nunca estão sujeitas à transmigração.”
(In: Zohar: o livro do esplendor, Ariel Bension (org.), Parte II,
Idra Zuta, 23. SP: Polar, 2006, 212)
Hinduísmo
“Arjuna disse:
Teu nascimento é posterior, o nascimento de Vivasvat é anterior:
como compreender que tu ensinavas lá no começo?
O Venerável disse:
Muitos foram os nascimentos atravessados por mim e por ti, Arjuna:
eu os conheço todos, Paramtapa, tu não conheces.
Mesmo sendo um atman sem começo, imperecível, sendo o senhor das
criaturas,
eu nasço da maya do atman, fundado na minha prakrti.
Toda vez que o dharma se torna débil, ó Bharata,
o adharma se levanta – então eu surjo de meu atman.”
(“Bhagavadgita" [Canção do Venerável], 4.4-4.7. SP: Globo, 2009, pp. 86-87, tradução de Carlos Alberto Fonseca)
"Também essas pessoas que são apenas hábeis em discutir sobre Brahman mas não têm realização, e [são] muito apegadas aos prazeres mundanos, nascem e morrem de novo e de novo, em consequência da sua ignorância."
(Shankara, in: "Aparokshanubhuti", aforismo 133)
Budismo
"Acontece, monges, que certos religiosos (samana) ou brâmanes, graças ao seu fervor, à sua energia... a uma perfeita atenção do espírito, atingem tal absorção de pensamento que este, uma vez absorvido (puro, limpo, sem mácula, isento de impurezas) recordar-se de suas diversas moradas na vida anterior -- uma existência, duas, três, quatro, cinco, dez, vinte, cinquenta, cem, mil, cem mil existências, de modo que dirá: 'Naquele tempo, eu possuía tal nome, tal família, era de tal casta, comia tal alimento, tinha tal prazer e tal sofrimento, atingi tal idade. Quando perdi aquela existência, entrei em outra. Nessa, enquanto tinha tal nome, tal família...Quando perdi essa existência entrei na existência atual'. Assim ele se recorda de sua vida anterior, com todos os detalhes e fatos..."
(Digha Nikaya, I, 27, apud "Yoga: imortalidade e liberdade", Mircea Eliade. SP: Palas Athena, 1996, p. 156)
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