Notas sobre Esoterismo (por Daniel Placido)
1- Esoterologia. Tomando como base Marcelo Campos e Ricardo Chaves, os estudos acadêmicos sobre o Esoterismo Ocidental têm como precursores três núcleos diferentes: I- O trabalho sobre história das religiões e religião comparada de pesquisadores como Jung, Eliade, Scholem e Corbin, todos ligados ao Círculo de Eranos; II- Os trabalhos pioneiros de F. Yates sobre o hermetismo renascentista; III- Os estudos sobre história do esoterismo cristão (na Sorbonne) iniciados por autores como F. Secret e R. Amadou.
2-Antoine Faivre. Em dezembro de 2021 faleceu o grande historiador
francês Antoine Faivre (1934-2021). Nos últimos 40 anos, ninguém contribuiu
tanto quanto ele para a reabilitação acadêmica do Esoterismo que, marginalizado
ou ignorado há muito tempo dentro do mundo universitário, pode encontrar
paulatinamente seu lugar ao sol enquanto um campo de estudos delineado em
termos de pesquisa e metodologia. Além disso, Faivre deixou trabalhos de grande
erudição sobre temas como hermetismo, alquimia e teosofia. Fará muita falta
como grande intelectual e como grande pesquisador.
3- O Esoterismo e método. O Esoterismo é muito mais um método do
que uma "doutrina", P. Riffard insiste nisso. Método esse que é
alicerçado na analogia inversa assim como na inversão do pensamento. Com ele o
esoterista aborda e desenvolve a cosmologia, a hermenêutica, a aritmosofia, a
escatologia e tudo mais. Nesse sentido,
tem quatro obras que considero excelentes como expressões ou exemplos da
aplicação de tal método, independente das diferenças entre seus autores e seus
objetos de estudo: “Tratado elementar de ciências ocultas”, Papus, Ed. Três; “Símbolos
fundamentais da ciência sagrada”, R. Guénon, Pensamento; “Os segredos do livro
da natureza”, O. M. Aïvanhov, Prosvecta; e “Meditações sobre os 22 arcanos
maiores do tarot”, V. Tomberg, Paulus.
4- Esoterismo cristão. Jerome Rousse Lacordaire, claramente
inspirado em René Guénon, tem razão nisto: "esoterismo cristão" é uma
noção mais apropriada do que "cristianismo esotérico" proposto pelos
ocultistas, pois não se trata de uma forma especial de cristianismo divorciada
da tradição cristã, e sim seu aspecto interior ou gnose, pois não há esoterismo
sem exoterismo, interior sem exterior.
Isso faz todo sentido quando pensamos, por exemplo, em um Jacob
Boehme: ele afirma que professa todos os sacramentos e crenças básicas da fé
luterana (“As quarenta questões sobre a alma”). Ao mesmo tempo, sua teosofia
aprofunda a compreensão dessas crenças e concepções, assim como aborda temas
pouco esclarecidos pela teologia tradicional.
5- Henry Corbin, monoteísmo e perenialismo. A crítica de Henry
Corbin ao monoteísmo exotérico carente de uma teologia negativa não é uma
validação fantasiosa do "paganismo", de forma alguma. O trabalho da
sua vida foi não só o estudo da filosofia e do esoterismo islâmicos, especialmente
xiita, mas a busca pela raiz que liga entre si as tradições abraâmicas, ligação
simbolizada -- para ele -- pelo Santo Graal.
Ainda sobre Henry Corbin, tampouco deixa de ser equivocada a
insistência em considerá-lo um "perenialista", nem mesmo um
"simpatizante". Esse retrato foi pendurado na parede errada. Ora,
Corbin, apesar de sua longa colaboração e amizade com S. H. Nasr, uma vez
"surtou" com este último por causa de Guénon, cuja obra não apreciava
a ponto de praticamente não citá-la. As razões de tal aversão pelo guénonismo
podem estar relacionadas com o fato de Corbin ter sido protestante, de ter
partido da filosofia moderna para construir sua metodologia e de ter sido
bastante influenciado pela teosofia alemã, temas que Guénon criticava, nem
sempre com muita pertinência, ou pouco conhecia. Corbin tinha maior apreço
pelos livros do perenialista F. Schuon, não por acaso muito mais cuidadoso do
que Guénon ao abordar tais assuntos. Inversamente, Guénon escreveu uma vez uma
resenha positiva de uma monografia de Corbin sobre Suhrawardi, um de seus
primeiros trabalhos como islamólogo. Se existe alguma afinidade concreta entre
Corbin e os perenialistas, ela está provavelmente no trabalho comparativo entre
tradições, o que, sem dúvida, ambos faziam com maestria, mas sob enfoques
distintos. Algo a ser aprofundado.
6- Filosofia Ocidental e Esoterismo. Desde o seu nascimento, a
Filosofia parece profundamente imbricada com o Esoterismo no mundo ocidental. O
pitagorismo não só era uma escola com uma estrutura esotérica, como pressupunha
um modo de vida – inspirado no orfismo – com regras e normas para se alcançar
uma ascese espiritual. O platonismo herda elementos pitagóricos e órficos, além
de aludir aos mistérios, e, por sua natureza, é uma forma de ascensão
espiritual através da contemplação, levando a alma a sair da sua prisão
material e retornar ao mundo inteligível, depois retornando. Como disse
Foucault, Aristóteles parece ser um desvio nesse sentido, pois nega a teoria
das ideias e o conhecimento como uma forma de intuição espiritual e autognose,
mas, mais tarde, o neoplatonismo, à luz da helenização e sem deixar de
incorporar elementos aristotélicos, resgata o vínculo entre Filosofia e
Esoterismo, seja com Plotino, em sua busca pelo Uno, sejam com Jâmblico, Proclo
e outros, buscando uma a comunicação com os deuses ou anjos situados entre o
primeiro princípio e este mundo. O cristianismo, malgrado a exclusão oficial do
gnosticismo, mantém dentro de si, mesmo que marginalizada ou suspeita, a
corrente esotérica viva, a qual, no Medievo, reaparece em figuras como Mestre
Eckhart e sua visão apofática de Deus: no nada o homem retorna à origem, e ali
escuta a voz divina. O Renascimento, por sua vez, será um momento privilegiado
de reaproximação entre Filosofia e Esoterismo, através do cruzamento de
correntes como platonismo, hermetismo, magia e cabalá, em figuras como M. Ficino,
Pico della Mirandola e G. Bruno, ou o nascimento de uma teosofia cristã que
desafia a teologia especulativa e racional, em figuras como Paracelso e Boehme.
É também o período de explosão de sociedades esotéricas, como a Rosacruz, que
chamou a atenção até de Descartes e Leibniz. Contudo, também é o período em que
começam as rupturas epistemológicas entre Filosofia, Ciência e Esoterismo, e
este último é cada vez mais é desacreditado, sendo que a razão torna-se cada
vez mais a única via de conhecimento com autoridade e credibilidade, cuja forma
consumada é ciência; não por acaso, Kant tenta ridicularizar Swedenborg como um
sonhador cujo suposto conhecimento visionário estaria além de nossa capacidade.
O Romantismo é o canto de cisne do vínculo entre Filosofia e Esoterismo, com Novalis,
Schelling e Von Baader. Apesar do século XIX ser um momento de renascimento
ocultista, poucos filósofos interessar-se-ão pelo Esoterismo. Mesmo no século
XX, raros filósofos de calibre levarão o Esoterismo à sério, e muitas vezes sem
terem muito espaço no mundo acadêmico, como é o caso de Steiner, Abellio e Ken
Wilber, ou, quando muito, reconhecidos mais como historiadores do que
filósofos, como é o caso de H. Corbin.
Essa situação poderá mudar em um futuro próximo? Não sei dizer.
7- Filosofia Oriental e Esoterismo. No Oriente, por sua vez, boa
parte da filosofia sempre pareceu próxima do esoterismo, como é o caso da
filosofia islâmica (relacionada tanto com o sufismo quanto com a tradição xiita),
da filosofia indiana (especialmente as escolas do Vedanta, Yoga e Samkhya), da
filosofia chinesa (taoísmo) e da filosofia japonesa (relacionada com o budismo,
especialmente o zen). Como o Oriente não
sofreu o mesmo processo de ruptura e secularização que o Ocidente, essa
filosofia oriental com forte tendência esotérica ou teosófica ainda permanece
viva, malgrado o processo de ocidentalização.
Além disso, hoje em dia, em uma realidade cada vez mais globalizada
em termos de cultura, qualquer curso de filosofia que não queria ser
provinciano precisa ter uma dimensão universal e cosmopolita, contendo em suas
grades curriculares disciplinas sobre filósofos como Shankara, Nagarjuna,
Lao-Tsé, Mulla Sadra, Sohravardî, Ibn ‘Arabî, entre outros.
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