Ironia e Refutação no "Críton" (por Daniel Placido)

 Para começar este comentário sobre o método refutativo e em seguida sobre a ironia de Sócrates no diálogo platônico Críton, vamos fazer uso de ponderações extraídas de V. Goldschmidt e de sua análise precisa da estrutura de diversos diálogos de Platão. 

Goldschmidt pondera [1] que em diversos diálogos platônicos (incluindo o Críton), há uma progressão natural do pensamento em quatro estádios, a qual corresponde justamente a uma “ascensão” (que implica correlativamente um descenso, do inteligível para a Caverna, ou seja, o mundo sensível) do particular para o universal, e das coisas sensíveis e das opiniões conflitantes para o domínio do que é universal e essencial: a) imagem; b) definição; c) essência; e d) ciência. E aproveitando essa exposição sobre a estrutura quatripartite e mais geral dos textos platônicos, também destacaremos e analisaremos os momentos próprios e específicos da refutação e da ironia socráticas. Não entraremos aqui em considerações de cunho mais histórico, sendo irrelevante para o objetivo de nossa análise saber se, por exemplo, o que é apontado no diálogo Críton teria entrado em contradição com a própria vida de Sócrates, pois é sabido que ele desrespeitou decisões superiores do Estado, na época da tirania (ou então discutir se a instauração de um regime tirânico, ainda que dentro da lei, não colocaria uma discussão mais a fundo nesta questão, a diferença entre o legítimo e o legal).

 

A questão prático-moral que está em jogo no Críton não planta para Sócrates apenas a discussão sobre coerência entre teoria e a prática, pois um filósofo que nunca deu importância para as opiniões vulgares acerca da morte, e nunca vacilou ante a certeza da imortalidade da alma (tema a ser ventilado no Fédon) e da superioridade das coisas espirituais sobre as vicissitudes da vida neste mundo, se mantendo firme na convicção sobre a existência da ideia de justiça, é agora colocado numa situação-limite, pois está diante da própria morte, e é dada a ele a possibilidade de optar pela fuga para outra cidade, só que assim desrespeitando explícita e formalmente as leis e instituições da cidade bem como a validade do seu julgamento (julgamento este marcado pela parcialidade e movido por intenções vingativas e caluniosas é verdade); mais do que isso, está em jogo o que qualquer pessoa faria a respeito da justiça e de como manter-se firme nesta, mesmo perante a morte e a ameaça de perder a própria vida, diante de uma situação análoga – ou seja, a noção de dever.

 

(A) Imagem. Sócrates começa refutando, mesmo no nível das opiniões, os argumentos de Críton, tirados das opiniões confusas e contraditórias da multidão, da “maioria”  (44 c-48 a); porém, ainda aqui, Sócrates não ultrapassa esse domínio, ele mesmo habilidosamente contrapõe às teses de Críton argumentos que também poderiam ser usados pela maioria, e ficamos numa mera oposição de opiniões, na esfera do devir e dos simulacros, e assim numa situação aporética.  Aqui a refutação é ainda puramente retórica, e insuficiente, pois qualquer sofista ou retoro seria capaz de fazer o mesmo, ainda mais numa circunstância em que está em jogo a própria vida. É necessário então saber o que é a justiça, interrogar a seu respeito, e este será um critério verdadeiro e correto para se concluir acerca do que é o melhor a se fazer neste caso e em situações similares (onde aqui as contingências da vida colocam em questão a validade da filosofia e seu método, o risco de pôr tudo a perder.).

 

(B) Definição. Sócrates começa inquirindo sobre a justiça, e lembra Críton disto: o medo de morrer não deve abalar aqueles princípios lídimos sobre os quais toda a  vida pregressa foi pautada, e eram aceitos como verdades inabaláveis. Eles estabelecem que não se deve ser injusto voluntariamente, não se deve jamais fazer o mal, nem mesmo para revidar um injustiça recebida; aqui se define o que se deve fazer, de modo imperativo. Aqui, pode ser levantado uma argumento puramente utilitário, onde o justo pode ser convenientemente tomado como o que favorece individualmente a pessoa, e enfim, o belo deixa de coincidir com o bem. Críton tenta convencer Sócrates de que deve pensar nos males que sofrerão seus filhos e amigos com sua persistência em aceitar a pena de morte estipulada pelo julgamento, e na realidade deveria fugir (48 c, 48 d). Aqui entra o utilitarismo moral, e certamente não deveria ser bom e justo consentir num mal contra si mesmo, assim como aos seus familiares e entes queridos.

 

Mas Sócrates faz Críton, pela sua própria razão, assentir que aqueles princípios devem ser mantidos, assim como a necessidade de não agir contra sua própria opinião, ie. não entrar em contradição interna consigo mesmo; e entre os que pensam deste modo, e os que ao contrário não pensam, não pode haver acordo nem mútua estima.  Críton assente mais uma vez. Sócrates então explora as consequências dos pontos iniciais em comum admitidos agora, e ante a pergunta de que se ao sair da cidade sem o consentimento desta e violando a justiça legal não estaria na verdade a prejudicar alguém, e cometer um mal; Críton não sabe o que responder (50 a). Sócrates exige de Críton que estando de acordo com os princípios dados, é preciso ir até o fim das consequências estabelecidas, não sendo possível nem aceitável uma contradição interna aqui.

 

(C) Essência e (D) Ciência. Sócrates então expõe (mediante uma espécie de prosopopéia das Leis, como se estas mesmas viessem falar com ele e o cobrassem a respeito de seus intentos) se sua ação ilegal e particular não estaria ela mesma abalando as Leis e o Estado, permitindo o acaso das instituições e da confiança nestas (as quais são por sua vez imagens da própria justiça universal), desacreditando os tribunais e suas decisões, e favorecendo por conseguinte a injustiça. Críton assente (50 c2).

 

Sócrates coloca que tendo jurado submissão às Leis e ao Estado, e agora não cumprindo isto, estaria também sendo ingrato para com sua dívida com estas, pois foi criado e protegido pelas mesmas muitas vezes, assim como os demais concidadãos; e do mesmo modo que vê a submissão aos pais como positiva, mais ainda o é perante a pátria, sendo esta muito mais importante e sagrada do que os pais. É assim plenamente justo obedecer e sofrer pacientemente pela pátria, pelo equilíbrio e estabilidade maiores que ela permite a todos, mesmo quando se estiver descontente com as ordens recebidas e decisões estipuladas. Críton novamente assente, pela força interna de sua própria razão (51 c7).

 

Sócrates ainda aponta que sendo criado na pólis e sem ser obrigado a permanecer nesta, agora desrespeitar suas leis não só abre um precedente para que outros particulares façam o mesmo, como significa um mau procedimento para com aquela que lhe deu a vida, o criou e à qual jurou obediência, e tendo praticamente passado a vida toda nesta cidade, dela desfrutando, era sinal de que aprovava seus procedimentos e usufruiu destes, e agora que a situação é desfavorável, está agindo de modo ingrato e puramente “a parte pris”, tendo nela criado seus filhos, e nem mesmo sob a possibilidade de uma pena de exílio, você afirmou preferir antes a morte a isto. Críton concorda forçosamente com os argumentos socráticos (52 d8).

 

Por que agora, tendo durante 70 anos de vida assumido os acordos e compromissos exigidos pela cidade, e podendo ter ido embora quando quisesse neste ínterim, Sócrates deveria rompê-los e faltar ao compromisso selado com a mesma? Além disso, seus amigos e filhos correrão uma série de riscos, e o exílio em uma pátria estrangeira com outra lei e outra moralidade seria ainda um pesadelo, pois será aí motivo de desconfiança e censura, como subversor da lei e corruptor de jovens. E como falar então para pessoas a respeito da justiça, após ter agido contra esta?

 

Sócrates se vê impelido a agir perante a justiça, malgrado os apelos dos amigos e suas preocupações para com seus filhos, pois do contrário, quando chegar ao além-túmulo, as leis do Hades (irmãs das Leis terrenas) não deixarão de se encolerizar com ele e ser-lhe-ão desfavoráveis; a injustiça que Sócrates recebeu é obra das mãos humanas, falíveis, mas não das Leis em si, nem da justiça. Críton confessa nada mais ter a dizer (54 d9), desistindo do seu projeto e “derrotado” pela dialética socrática. A partir da essência – no caso, a Justiça- não existem duas consequências possíveis sobre o que se fazer; isto só ocorre quando se permanece no reino das opiniões e das contrariedades.

 

Diante do que foi exposto acima, podemos concordar enfim com esta caracterização geral feita por Luc Brisson [2]: 

O método socrático – chamado élenchos, isto é, refutação – consiste em procurar as contradições decorrentes logicamente dos axiomas ou postulados que o próprio Sócrates e seu interlocutor aceitaram. Em outros termos, nenhum axioma é aceito antes que todas as conseqüências sejam examinadas e provadas sua consistência...Todavia, a demonstração da consistência de um sistema de axiomas não é suficiente, aos olhos de Sócrates, se esses axiomas se fundarem em bases controvertidas. Enquanto os axiomas forem hipotéticos... a prova não estará completa e nenhuma demonstração convincente poderá ser esgotada. O emprego desse procedimento se explica pela fascinação de Platão pelo método geométrico, considerado por ele o método por excelência capaz de assegurar o melhor funcionamento da mais alta atividade da alma e, portanto, do ser humano.

 

Quanto à ironiana segunda parte do texto, Sócrates faz o elogio das leis da Cidade-Estado; o método, aqui, prima menos pela refutação (das leis) do que por expor uma postura irônica para com os desígnios que a (in)justiça impôs ao filósofo. A ironia de Sócrates busca mostrar que, apesar de a esfera da ação ético-moral do indivíduo nem sempre ser conciliável com as leis do Estado - a não ser que as leis desse Estado sejam uma representação objetiva dos anseios ético-morais do indivíduo - deve permanecer o respeito aos desígnios da lei, ainda que injusta, pois a ação moral também imprime a necessidade de obediência a elas. Isto nos leva imediatamente a uma comunidade de homens justos, na qual a justiça, em sua forma jurídica, se tornaria dispensável. Podemos observar no Críton, então, os germes de uma questão que seria amplamente discutida em A República, um dos diálogos de maturidade de Platão. Surge em nosso horizonte, pois, o desfecho do filósofo, que, justamente por seguir as leis de sua liberdade individual, submete-se aos desígnios da lei de sua comunidade. O destino já selado de Sócrates fica por realizar-se no Fédon, mas, o que há de mais importante, no Críton é o desenvolvimento do método refutativo de Sócrates e a fusão-distinção entre refutação e ironia nas duas partes em que dividimos nossa leitura do diálogo, vimos como a decisão racional de Sócrates de, ao refutar Críton, novamente condenar-se, é, na verdade uma vitória da ética e da própria razão, pois Sócrates mantém-se coerente com sua posição até o fim. As tragédias e injustiças individuais, às vezes são necessárias para que prevaleça a justiça maior, acima dos ocasos da sorte, e do próprio destino pessoal humano, pois a justiça não é matéria de opinião nem conjecturas, mas essência que participar da super-essência: o Bem.

 

Notas:

[1] In: Os diálogos de Platão: estrutura e método dialético. São Paulo: Edições Loyola, pp. 305-312.

[2] “A prova pela morte: um estudo sobre o Fédon de Platão”, In: Revista Hypnos, ano 7, número 9. São Paulo: Editora da Puc/Editora Loyola, 2002, p. 28.

 

Bibliografia:

 

Brisson, Luc. A prova pela morte: um estudo sobre o Fédon de Platão, In: Revista Hypnos, ano 7, número 9. São Paulo: Editora da Puc/Editora Loyola, 2002.

Goldschmidt, Victor. Os diálogos de Platão: estrutura e método dialético. São Paulo: Edições Loyola, 1993.

Platão. Apologia de Sócrates/Críton. Lisboa: Edições Setenta, 2009.

_____. A república. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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