Notas sobre Gnosticismo (Daniel Placido)

1- Gnosticismo e Nova Era? G. Filoramo considera que a Nova Era corresponde a uma "visão de mundo gnóstica".  Apesar dele reconhecer que essa suposta nova gnose tem diferenças com a do passado, continuo achando problemático associar o gnosticismo a algo tão diferente dele. Apesar da liberdade espiritual presente tanto no gnosticismo antigo quanto na Nova Era, esta é holística, evolucionista e otimista, elementos que evidentemente não se coadunam com o pessimismo gnóstico sobre o mundo e a condição humana.

Faz mais sentido comparar o gnosticismo com o budismo, para o qual tudo neste mundo é impermanente, tal como no gnosticismo o mundo, território do Demiurgo ignaro, é um plano instável e imperfeito do qual devemos nos evadir, exigindo, segundo Welburn, uma grande lucidez.  

Não deve ser acaso, assim, que na antiguidade o profeta Mani tentou criar uma síntese entre budismo, gnosticismo e zoroastrismo: o maniqueísmo. Contudo, para os maniqueus o mundo era uma criação benigna do Espírito Vivo, sendo que as centelhas de luz anímica foram capturadas e aprisionadas na matéria por Arihman, uma deidade sombria, mas mesmo nessa condição resta a esperança de libertação para elas e toda a natureza.

2- Maniqueísmo. O maniqueísmo foi uma religião extraordinária por diversos motivos. Enumero alguns.

Primeiro: ele era uma espécie de síntese de cristianismo gnóstico, zoroastrismo e budismo, o que o torna diferente do gnosticismo em sentido estrito em muitos aspectos.

Segundo: ele tinha a pretensão de ser uma verdadeira religião mundial, e de fato conseguiu isso, com vestígios presentes na África e na Ásia (até mesmo na China).

Terceiro: seu criador, o persa Mani (século III EC), foi um dos poucos profetas que, sem dar brecha às intermináveis discussões escriturísticas, definiu um conjunto canônico de textos para seus seguidores. 

E quarto: foi uma religião perseguida sem trégua por seus adversários, não obstante sobreviveram textos e materiais mais diretos, muitos encontrados a partir do século XIX.

3- Leituras.Tenho lido a respeito do gnosticismo nos últimos anos. Todavia, não o fiz de forma sistemática, sem falar que, como a bibliografia sobre o assunto tem dimensões oceânicas, aumenta a cada ano e está sujeita a inúmeras controvérsias, seria no mínimo temerário pretender conhecê-la de "modo profundo". Estritamente na condição confessa de curioso, indico a leitura, para quem não leu nada ou quase nada sobre o tema  e quer ampliar seu conhecimento: a) dos evangelhos gnósticos e-ou apócrifos; b) da literatura heresiológica clássica, a despeito da sua parcialidade; c) de estudos e comentários assinados por autores como H. Jonas, H. C. Puech, A. Versluis, D. Brakke, A. Pinero, F. G. Bazán, E. Pagels, S. Hoeller, A. Welburn, K. King, G. Filoramo, J. M. Robinson, B. Layton, I. P. Couliano e M. Meyer. Tem vários outros autores que não citei acima porque só conheço de nome, nunca li, como G. Quispel. Pode parecer muita coisa, mas isso é só o básico.

Aqui no Brasil, indico os livros e vídeos de Alaya Dullius.

4- Guénon e gnosticismo. Apesar dos comentários balizados de Jean Borella , F. G. Bazan e Mark Sedgwick, um tema que ainda precisa ser melhor esclarecido, e sobre o qual quero escrever,  é o da relação de Guenon com o gnosticismo. Em geral nos perenialistas prevalece uma leitura negativa do gnosticismo, provavelmente por ser um movimento esotérico heterodoxo. 

Já o caso de Guénon é mais complexo. Ele foi membro da Igreja gnóstica (cujo gnosticismo, porém, parece ser apenas nominal), e escreveu na época textos em que existe uma clara ressonância gnóstica, como o artigo "O Demiurgo", apesar de já aparecer ali uma tentativa de comparação com o Vedanta de Shankara.

Em diversas cartas, Guénon diz que nunca teve reais afinidades com o gnosticismo e suas derivações (maniqueísmo e catarismo), por ser este heterodoxo e dualista, o que lhe daria um status aporético. Contudo, acredito que o assunto mereça uma investigação mais cuidadosa, e que Guenon teve talvez uma influência gnóstica que, porém, foi abandonada conforme ele evoluía para uma visão "perenialista" mais "ortodoxa".

5-  Transmigração. A despeito de sua evidente parcialidade, o relato de Irineu de Lyon sobre a transmigração no gnosticismo é bastante interessante (Contra as heresias. SP: Paulus, 2009).

Em uma passagem (I, 23, 2), ele comenta sobre o caso de Helena, a consorte do gnóstico Simão, o Mago, que, acreditava-se, teria sido em uma vida anterior, entre outras encarnações turbulentas, Helena de Troia. 

Já em outra passagem da mesma obra (II, 33,1-5), ele critica a transmigração pelo fato de que as pessoas não se lembram de suas supostas existências anteriores em outros corpos, e rejeita o argumento platônico sobre a razão desse esquecimento.

Quero fazer uma coletânea de passagens e excertos sobre esse tema nas tradições antigas e medievais como pitagorismo, gnosticismo, maniqueísmo, platonismo-neoplatonismo, hinduísmo, budismo, cabalá, entre outras.

6- Gnosemania. Ioan Couliano tinha plena razão quando afirmou, não isento de ironia, que os termos "gnóstico" e "gnosticismo" sofreram uma inflação assustadora, ao lado da sua redescoberta a partir dos manuscritos de Nag Hammadi, pois foram aplicados literalmente a qualquer coisa, quando, na realidade, nem os especialistas têm uma definição consensual deles. A ponto de significar tudo, já não dizem muita coisa. Não importa se se tratam de autores e correntes de ideias de naturezas diferentes, para não dizer opostas, tudo virou sinônimo de "gnóstico" ou "gnosticismo": Boehme, Schelling, Hegel, Marx, Blake, nazismo, surrealismo, Nova Era, contracultura, filmes de D. Aronofsky, Beatles, Teletubbies...

Contra esta "gnosemania" lastreada na preguiça intelectual e na ideologia -- ouviram, epígonos de Voegelin? --, é preciso um trabalho paciente e cuidadoso de esclarecimento desses termos para usá-los de forma coerente.  


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