A “Cadeia de Ouro” e o platonismo (por Daniel R. Placido)

 

            A expressão cadeia de ouro, dentro de um contexto platônico, costuma ser associada a três sentidos, que, amiúde, podem ser combinados entre si: a) a ordem universal e sua manutenção; b) a conexão entre os diferentes níveis de realidade (=cadeia do Ser); c) a corrente de transmissão do platonismo.

            A expressão “cadeia de ouro” (ou cadeia áurea) tem sua origem em Homero, no Canto VIII da Ilíada, onde Zeus discursa sobre seu poder incomensurável:

Por esse modo há de ver quanto sou, mais que todos, potente./ Caso queirais pôr à prova o que digo, será proveitoso:/por uma ponta amarrai no Céu vasto áurea e grande cadeia,/e, da outra ponta, reunidos, ó deuses e deusas, forçai-a./Por mais esforço que nisso apliqueis, impossível a todos/vos há de se arrastar a Zeus grande, o senhor inconteste./Mas se, ao contrário, eu quiser, seriamente, puxar para cima,/a própria terra e o mar vasto, convosco trarei desde de baixo./Mais: ser-me-á fácil no pico mais alto do Olimpo amarrar-vos/nessa corrente, deixando pendente tudo isso no espaço;/tanto supero os mortais, tanto os deuses eternos supero.”/Isso disse ele; os presentes calados e quedos ficaram/estupefatos perante a violência de suas palavras (HOMERO, 2011: 210-211)

              Se os deuses colocassem uma cadeia áurea amarrada ao Céu e a puxassem para baixo, isso não teria resultado algum, mas se ele, Zeus, quisesse, poderia puxar a terra e o mar para cima por meio desta corrente, e ainda levaria os deuses consigo; inclusive, se fosse de sua vontade, poderia amarrá-los no topo do monte Olimpo usando a corrente. Essa passagem da Ilíada ressalta o poder supremo de Zeus, imensurável mesmo diante dos demais deuses, como mantenedor da ordem universal, enquanto a corrente de ouro representa o liame entre o Céu e a terra (sentidos a e b).

            Essa expressão homérica é retomada mais tarde por Platão no diálogo Teeteto (153c-d), onde Sócrates discute com Teeteto sobre movimento e repouso. Sócrates identifica a cadeia de ouro de Homero com o Sol, e afirma que enquanto o céu girar (e com ele o Sol), tudo que existe é preservado entre deuses e homens, e se esse céu porventura parasse de se mover, tudo seria destruído e desvirtuado (sentidos a e b).



         Inspirando-se no platonismo, em especial Plotino, Macróbio nos Comentarios Al sueno de Escipión (I, 14, 15, 2005: 79) considerou que a Mente deriva do deus supremo (Uno) e a Alma deriva da Mente, em uma cadeia do Ser em que os níveis se espelham, e que desde o primeiro princípio até a região mais baixa do universo, existe “um encadeamento único e ininterrupto de vínculos recíprocos: esta é a cadeia áurea de Homero, quem recorda que o deus ordenou que ficará dependurada desde o céu até a Terra” (sentido b).

Por sua vez Damáscio em sua Vida de Isidoro (VI. E, DAMASCIUS, 1999: 241), retomando a expressão de Homero e Platão, falou de uma cadeia de ouro que representa os expoentes platônicos da verdade divina. Essa cadeia estaria em vinculada à cidade de Atenas, origem da Academia, estabelecendo um elo entre neoplatônicos e Platão como uma tradição única (sentido c). E o platonismo também é a filosofia que representa o conhecimento da verdade divina, a qual pode levar o sujeito à sua matriz divina, ascendendo pelos diferentes níveis de realidade até chegar no primeiro princípio (sentido b).

Em 529 EC ocorreu o fechamento da Academia platônica pelo Imperador Justiniano, fazendo com que Damáscio, acompanhado de mais seis platônicos, migrassem para o Império persa, tendo se instalado depois em Harran na Síria. Ninguém sabe se mais tarde o grupo voltou ou não para Atenas (DAMÁSCIO, 2020: 13-14). O fato é que Academia desapareceu do horizonte histórico visível desde então.

Dessa forma, a cadeia de ouro poderia ser considerada extinta, não obstante, o platonismo permaneceu vivo dentro do mundo islâmico, judaico e cristão no Medievo, e retornará com força no Renascimento, através de Plethon, Pico della Mirandola, Ficino, Patrizi e outros. Por isso Thomas Taylor, o grande estudioso e tradutor de textos platônicos do século XIX, disse, em sua Introdução aos Hinos e Iniciações de Orfeu, que a cadeia de ouro estava viva e era formada pelos discípulos que transmitiram e preservaram a tradição de Platão e seu significado mais profundo (sentido c), alegando que esta tradição teológica era a mesma de Orfeu e Pitágoras.

Talvez os homens se esqueçam um dia do nome de Platão, assim como talvez se esqueçam do vínculo que os une à divindade, mas a cadeia de ouro continuará existindo como o liame entre o céu e a terra e como a própria ordem universal, eternas.

 

Bibliografia

 DAMASCIUS.  Damascius: The Philosophical History, Polymnia Athanassiadi (edição  e tradução). Athenas: The Apamea Cultural Association, 1999.

____________. Sobre os primeiros princípios: aporias e soluções. São Paulo: Polar editora, 2020.

HOMERO. Ilíada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

MACRÓBIO. Comentarios Al sueno de Escipión. Madrid: Ediciones Siruela, 2005.

PLATÃO. Teeteto. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2010.

The Golden Chain of Platonic Sucession: https://plato2051.tripod.com/

 

 

 

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