Gnosticismo, Sexualidade e Mística (por Daniel R. Placido)
(*Publicado na revista 777)
Gnosticismo foi o nome dado tardiamente a um conjunto de correntes esotéricas, a maioria de matiz cristã, que floresceram aproximadamente entre os séculos II a V EC, sobretudo sob a esfera cultural helenística. Através de ritos iniciáticos, ele prometia ao adepto a realização espiritual pela gnose, considerada um conhecimento interior, transformador e soteriológico.
Apesar de falarmos do gnosticismo no singular, não existiu uma unidade tampouco uma centralidade institucional entre os diversos grupos gnósticos. Entre eles, inclusive, circulavam diversos textos filosófico-esotéricos como o Evangelho de Filipe, o Evangelho de Maria Madalena, o Evangelho de Tomé, Pistis Sophia, Apócrifo de João, entre muitos outros.
Não demorou muito para o gnosticismo ser considerado heterodoxo pela corrente protocatólica nascente dentro da Igreja, tendo sido excluído paulatinamente de suas fileiras, junto com seus textos e suas concepções filosófico-religiosas. Não obstante, é possível encontrarmos vestígios do gnosticismo mesmo em textos bíblicos neotestamentários considerados canônicos pela Igreja, como algumas Cartas de Paulo e o Evangelho de João.
Não é difícil adivinhar que o gnosticismo tem sido objeto de diversas interpretações e controvérsias entre pesquisadores até os dias atuais, tanto sobre a validade teórica desse conceito quanto sobre a natureza do movimento que pretende emoldurar. Entre essas discussões, encontra-se a questão da moralidade e da sexualidade no seio das correntes gnósticas.
Existem relatos antigos que narram supostas práticas eróticas e libertinas dentro das correntes gnósticas, mas que poderiam ser considerados apenas versões fantasiosas, inventadas ou exageradas por inimigos, com o intento de difamar os seguidores do gnosticismo e desacreditá-los sob a acusação de devassidão e imoralidade, porquanto muitos grupos gnósticos tendiam a defender uma concepção metafísica dualista, anticósmica e antisomática que, evidentemente, implicaria no ascetismo moral e sexual.
Entre os séculos II-IV EC já circulavam essas acusações de licenciosidade contra os gnósticos, não muito diferentes daquelas feitas pelos romanos contra os primeiros cristãos, oriundas basicamente de duas fontes: a) Ireneu de Lião (2009) que, em Contra as Heresias, II, 32, 1, disse que os gnósticos defendiam a prática de todo tipo de ação, inclusive as ações más como o adultério, ficando subentendido nisso a licenciosidade; e em CH I, 25, 3-4, Ireneu de Lião sustentou ainda que os carpocratianos eram relativistas e que para eles devíamos, para não termos que transmigrar muitas vezes neste mundo, experimentar de tudo em uma única vida para sermos efetivamente livres; b) Epifânio de Salamina (Contra as Heresias) que, por sua vez, descreve os borboritas ou barbelognósticos como licenciosos, e que, para se livrarem da prisão do corpo material, teriam supostamente praticado a promiscuidade, o homossexualismo, o incesto, a coprofagia, a ingestão de esperma, aborto e devoração de fetos! (apud WILLER, 2010: 172)
No entanto, ainda que esses relatos tenham uma credibilidade duvidosa por vários motivos, seja por sua procedência, seja por sua inverossimilhança, como os gnósticos tendiam a recusar a moralidade da religião cristã formal, não seria absurdo imaginar que alguns grupos dentro do movimento gnóstico teriam realmente adotado uma conduta moral e sexual mais “libertária” para os padrões da época, ainda que não necessariamente do modo bizarro e escandaloso como relataram seus adversários e acusadores.
Dessa forma, conforme Claudio Willer (2010), seria possível falarmos em duas tendências dentro do gnosticismo antigo:
a) gnosticismo ascético: dualista, teria aversão pelo corpo e pela sexualidade, afastando-se da matéria e de tudo que é mundano, considerando o mundo uma obra má do Demiurgo (ou de Sofia); defenderia uma espécie de ascese espiritual, não muito diferente daquela proposta por platônicos e neoplatônicos, apesar de diferenças com estes últimos. Por exemplo, seria o caso de Valentino, ainda que atualmente ele seja visto mais como um gnóstico “monista”.
b) gnosticismo licencioso: faria uso da sexualidade de forma sagrada, como ocorria nos antigos cultos de mistério (elusianismo e dionisismo), ou quem sabe de forma antinômica, pois seria indiferente o comportamento moral do gnóstico, podendo ele abusar dos prazeres e da sexualidade, ou até mesmo inverter a relação entre o espiritual e o carnal, até porque quem cometeu o pecado original foi Sofia, não o homem, desonerando este último dessa dívida. Exemplos: carpocratianos (nem sempre considerados gnósticos), borboritas e barbelognósticos.
Ciente da polêmica sobre a existência ou não de um gnosticismo licencioso, Arthur Versluis (2019) considera que, em determinados textos, é possível presumir como algumas correntes gnósticas perfilharam realmente uma visão mais imanente ou “tântrica” da sexualidade enquanto algo sagrado, o que não implica em devassidão ou algo do gênero, apenas destoando da moral rígida da ortodoxia cristã que se formava naquele contexto e que demonizava o corpo humano e a sexualidade em nome de uma moral ascética.
De nossa parte, citaremos e comentaremos adiante algumas passagens de textos gnósticos conhecidos que dão margem a uma interpretação na linha de pensamento mais “tântrica”, ainda que nada a respeito possa ser considerado conclusivo ou definitivo, pois esses textos, amiúde de caráter simbólico, metafísico e cosmológico, são, antes de mais nada, de difícil compreensão e interpretação.
O Evangelho de Tomé, cujas origens podem remontar ao século I EC, afirma no Logion 37 (apud VERSLUIS, 2019) que, quando formos como crianças, nos despiremos de nossa vergonha, pisando em nossos trajes, para vermos sem medo o Filho Daquele que vive. Isso parece uma alusão à ideia de que a vergonha inerente ao corpo e à sexualidade só acontece em nosso estado decaído, mas quando a inocência for recuperada através da iniciação tudo voltará a ser sacralizado, como um paraíso reconquistado, e o que antes era visto como pecaminoso não mais o será.
Outro texto interessante nesse sentido é o Evangelho segundo Filipe. Ele afirma que a morte começou a existir a partir da separação entre homem e mulher, e que, superando a morte e gerando nova vida, Cristo veio para uni-los novamente; e afirma que enquanto o batismo trazia a ressurreição e redenção, esta última só seria consumada através do sacramento da câmara nupcial, pois com ela o neófito se reveste da Luz divina perfeita, que torna o gnóstico invisível à influência maléfica dos arcontes, regentes das esferas planetárias. Diz o texto:
Pois bem, a mulher se une com o marido na câmara nupcial. A alma de Adão chegou à existência por um sopro. Seu cônjuge é o [espírito; o espírito] que lhe foi dado é sua mãe [e com] a alma lhe foi outorgado [...] em seu lugar. Ao unir-se [pronunciou] algumas palavras que são superiores às Potências. Estas tiveram-lhe inveja [...] união espiritual [...]. (Evangelho Segundo Filipe, 76-80)
Esse texto discorria sobre algum tipo de união sexual concreta entre homem e mulher, ou apenas era um metáfora para os princípios masculino e feminino, inerentes ao ser humano e reunidos em um processo de casamento alquímico interno? Não sabemos com clareza, mas nenhuma hipótese pode ser descartada aqui.
Por fim, citaremos uma passagem do texto Trovão: a mente perfeita:
Pois eu sou a primeira e a última.
Eu sou a estimada e a rejeitada.
Eu sou a prostituta e a sagrada.
Eu sou a esposa e a virgem.
Eu sou a (mãe e) a filha.
Eu sou os membros da minha mãe.
Eu sou a estéril
e muitos são os filhos dela.
Eu sou aquela cujo casamento é grandioso,
e eu não tomei um marido.
Eu sou a parteira e aquela que não dá à luz.
Eu sou o consolo das minhas dores do parto.
Eu sou a noiva e o noivo...
(...) Pois eu sou aquela que existe sozinha,
e eu não tenho ninguém que irá me julgar.
Porque muitas são as formas agradáveis que existem em numerosos pecados,
e incontinências,
e paixões vergonhosas,
e prazeres fugazes,
que os homens aderem até que eles fiquem sóbrios
e subam até o lugar de repouso deles.
E eles me encontrarão lá,
e eles viverão,
e eles não morrerão novamente.
(Fonte: internet)
Ao contrário da interpretação costumeira do gnosticismo como dualista, esse texto rejeita claramente todas as formas de dualidade, inclusive entre bem-mal, certo-errado, vício-virtude. Longe de indicar um simples imoralismo, o texto parece apontar para a visão de uma unidade subjacente à toda divisão e separação ontológica, a qual só pode ser apreendida e realizada pelo gnóstico realizado. Nesse sentido, até este mundo participaria do mundo divino, se soubéssemos olhá-lo à luz da unidade, como, curiosamente, diz o Evangelho de Tomé “O Reino do Pai está espalhado pela Terra e os homens não o veem.”
Bibliografia
FILORAMO, Giovanni. Monoteísmos e dualismos: as religiões de salvação. SP: Hedra, 2005.
FIORILO, Marilia. O Deus exilado. RJ: Civilização Brasileira, 2008.
HOELLER, Stephan. A cosmovisão gnóstica, In: Esoterismo e Magia, Jay Kinney (org.). SP: Cultrix, 2006.
MEYER, Marvin. Mistérios gnósticos. SP: Cultrix, 2007.
LIÃO, Ireneu de. Contra as Heresias. SP: Paulus, 2009.
ONFRAY, Michel. Contra-História da Filosofia, Vol. 2: O Cristianismo Hedonista. SP: Martins Fontes, 2008.
VERSLUIS, Arthur. A história secreta do misticismo sexual do Ocidente. SP: Madras, 2019.
WELBURN, Andrew. As origens do cristianismo. RJ: Editora Best-seller, 1991.
WILLER, Claudio. Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna. RJ: Civilização brasileira, 2010.
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