Os platônicos e o debate sobre Platão-Aristóteles (por Daniel Placido)

 

 Como Jorge Luís Borges brincou uma vez, não sem ter certa razão, não existia discussão metafísica que não fosse uma continuação do antigo debate entre Platão e Aristóteles. Entre os platônicos não foi diferente, pois apesar de sua óbvia preferência por Platão, isso não implicava necessariamente em rejeitar Aristóteles por completo, a depender do filósofo e do contexto.

Os Pais da Igreja como Justino, Orígenes, Tertuliano, Clemente de Alexandria e Agostinho, claramente preferiram Platão à Aristóteles, considerando aquele uma espécie de profeta ático e precursor de Cristo. Dessa forma, não era de todo errôneo o argumento nietzschiano de que o cristianismo consistia, no essencial, em um “platonismo para o povo”.

Entre os neoplatônicos pagãos da Antiguidade tardia, prevaleceu uma posição conciliatória. Enquanto Plotino incorporou elementos da noética aristotélica e Porfírio elementos da lógica, Proclo considerava o exame da obra aristotélica uma espécie de preâmbulo ao estudo (equivalente a uma iniciação) da verdadeira filosofia, a de Platão.

Entre os filósofos islâmicos medievais, não obstante o aristotelismo radical de Averroes, pareceu predominar uma posição conciliatória, como em Avicena, conquanto não isenta de equívocos exegéticos, às vezes. Por exemplo, obras de conteúdo predominantemente neoplatônico como a Teologia de Aristóteles e o Liber Causis foram atribuídas erroneamente a Aristóteles ou ao aristotelismo. Por outro lado, Ibn ‘Arabî foi chamado de “filho de Platão”, mas provavelmente nunca leu diretamente um único livro de Platão. Já Sohravardî, apesar de sua rejeição da epistemologia aristotélica, teria encontrado em sonho ao próprio Aristóteles, resultando isso em um armistício imaginal.

 

Entre os medievais latinos o aristotelismo pareceu dominar o terreno, sobretudo com as traduções da obra aristotélica a partir dos árabes, porém é necessário lembrar que Santo Tomás de Aquino, o maior discípulo cristão do “Filósofo”, não deixou de incorporar a influência platônica de Agostinho e do Pseudo-Dionísio, o Areopagita. Por outro lado, mesmo um platônico místico como Mestre Eckhart devia muito a Aristóteles, sendo igualmente o caso de Boécio.

Entre os renascentistas o debate é um tanto complexo e acirrado. Iniciado por Plethon, este atacou duramente Aristóteles – seguido nessa linha por Bruno e Patrizi-, acusando-o de ser um ateu e sofista, o qual é defendido por George de Trebizonda e pelos demais aristotélicos. Bessarion, ex-aluno de Plethon, procurou uma postura conciliatória entre platonismo e aristotelismo em função do cristianismo, no que foi seguido por Pico della Mirandola e Marsilio Ficino. Este último, que traduziu e comentou toda a obra platônica, considerava Aristóteles um seguidor dos “teólogos antigos” como Zoroastro, Hermes, Orfeu, Pitágoras e o próprio Platão. Além disso, Ficino atribuía uma interpretação desvirtuada de Aristóteles a Alexandre de Afrodísias e Averroes, enquanto considerava que autores como Teofrasto e Pico della Mirandola tinham compreendido correta e adequadamente o mestre do Liceu.

E a discussão sobre platonismo e aristotelismo continuou entre os filósofos modernos, com Leibniz, More, Cudworth, chegando até Hegel, Schelling, Schlegel, Emerson, Bergson, Frege, Husserl e outros. Whitehead afirmou que toda filosofia ocidental era na realidade um comentário a Platão, enquanto Sir David Ross gracejou que, apesar de Aristóteles ter dito ser mais amigo da verdade do que de seu mestre, em geral ele estava mais em concordância do que em desacordo com ele.

Curiosamente, para encerrar, Rudolf Steiner disse uma vez que platônicos e aristotélicos se uniriam novamente, a partir do século XX, para salvar a ciência europeia do envenenamento materialista. Essa observação faz todo sentido pra mim, e estou aberto a uma conciliação, afinal Platão considerava Aristóteles a encarnação da inteligência humana, e ela ainda pode ser muito útil contra o materialismo atual.

 

 

 

 

 

 

 

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