Romantismo e modernidade (por Daniel Placido)

 

 De acordo com R. Safranski, M. Löwy e outros autores, o Romantismo não deve ser compreendido como uma mera escola literária ou filosófica presente na Europa desde o final do século XVIII, mas como uma visão de mundo inerente a um conjunto de movimentos filosóficos e culturais dentro de uma linha temporal mais longa, cuja característica comum e principal reside na crítica ao mundo moderno, ou seja, na crítica ao capitalismo. Nesse sentido, existem elementos românticos tanto na tradição do marxismo quanto em correntes estético-culturais como o surrealismo e a contracultura, sem falar de filósofos conservadores como Heidegger.

Conforme M. Löwy (2012: 36-37), os românticos em geral enxergavam uma oposição entre "Kultur" e “Zivilisation”, ou seja, entre o conjunto de valores tradicionais sociais, morais ou culturais do passado e o desenvolvimento moderno, técnico-econômico. A quantificação da vida, expressa na total dominação do valor de troca, do cálculo frio do preço e do lucro na sociedade moderna, era vigorosamente atacada pelos românticos, pois dela decorriam todas as demais mazelas modernistas, como o declínio dos valores e dos vínculos humanos qualitativos, a uniformização da vida social e o triunfo do utilitarismo. Ataque que poderia tomar contornos apocalípticos e elitistas, tal como nestes versos de Yeats: “…Things fall apart; the centre cannot hold;/Mere anarchy is loosed upon the world,/The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere/The ceremony of innocence is drowned;/The best lack all conviction, while the worst/Are full of passionate intensity”  (The Second Coming, 1920).

Dessa forma, o Romantismo não era meramente uma reação ideológico-cultural aos excessos racionalistas do Iluminismo, pois continha também uma faceta social e política avessa ao capitalismo em vias de consolidação, e se confundia com uma crítica à civilização industrial ou moderna, em nome de valores sociais e culturais pré-capitalistas, ou, em outra direção, em nome de uma revolução social a superar o capitalismo. O Romantismo era politicamente um Janus bifronte, podendo se apresentar, conforme M. Löwy, ora como conservador, ora como revolucionário, manifestando-se em figuras tão díspares quanto Burke e Rousseau, Coleridge e Blake, Balzac e Fourier, Carlyle e W. Morris, Heidegger e Marcuse.

Newton, William Blake (1795)


À luz de uma perspectiva herdeira do  Esclarecimento e do liberalismo, o  crítico literário J. G. Merquior (1982: 188-190) apontou insólitas convergências da crítica “contracultural” ao pensamento científico e técnico (assim como à modernização capitalista) proposta por H. Marcuse e outros autores da Teoria Crítica de inspiração marxista, com a crítica conservadora da técnica moderna encetada por M. Heidegger, sendo estes filósofos responsáveis pela reverberação de um irracionalismo de raízes românticas dentro de setores da cultura do século XX, segundo Merquior. Ainda conforme Merquior, a desconfiança radical em relação à ciência amiúde andou junto com a reação ao progresso social.

Porém, o uso do termo “irracionalismo” para rotular o Romantismo demanda uma análise mais cuidadosa, evitando-se críticas e conclusões exageradas, como aquelas contidas na obra "A destruição da Razão” (2020), do filósofo marxista G. Lukács. Essa obra pretendia interpretar o nazifascismo como a longa conclusão teórica e prática do "movimento" filosófico irracionalista" representado por Schelling, Nietzsche, Kierkegaard, Bergson, Splenger e outros, atrelado à escalada imperialista da burguesia no plano econômico e político. Todavia, Lukács, além de não discutir o lado romântico e messiânico do próprio marxismo nessa obra demasiado polêmica, ao partir de um racionalismo que parece misturar Hegel com Stálin, foi incapaz de discutir mais profundamente o que afinal seria a razão e seu contrário, a irrazão. Apenas sustentou, de modo vago, que o irracionalismo era uma filosofia carente da visão da totalidade e de suas mediações, o que, a nosso ver, pode até ser uma falta de dialética mas não de racionalidade em si, e, portanto, o assunto demandaria uma discussão mais séria da parte do autor.

Além disso, seria um erro tremendo ver no Romantismo a gênese exclusiva de movimentos reacionários como o nazifascismo quando, na realidade, segundo I. Berlin, o movimento romântico inspirou inclusive a consciência liberal moderna, na essência individualista. Em síntese, o Romantismo é uma mundividência complexa e multifacetada, e qualquer tentativa de abordá-la filosófica ou politicamente precisa evitar o reducionismo.

 

 Bibliografia

BERLIN, Isaiah. As raízes do Romantismo. São Paulo: Três estrelas, 2013.

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica, In: scientiæ studia, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-98, 2007.

LÖWY, Michael. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2012.

LUKÀCS, Georg. A destruição da razão. São Paulo: Instituto Lukács, 2020.

MERQUIOR, José Guilherme. A natureza do processo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

SAFRANSKI, Rudiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.

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