Romantismo e modernidade (por Daniel Placido)
Conforme M. Löwy (2012: 36-37), os românticos em geral enxergavam
uma oposição entre "Kultur" e “Zivilisation”, ou seja, entre o
conjunto de valores tradicionais sociais, morais ou culturais do passado e o desenvolvimento
moderno, técnico-econômico. A quantificação da vida, expressa na total
dominação do valor de troca, do cálculo frio do preço e do lucro na sociedade
moderna, era vigorosamente atacada pelos românticos, pois dela decorriam todas
as demais mazelas modernistas, como o declínio dos valores e dos vínculos
humanos qualitativos, a uniformização da vida social e o triunfo do utilitarismo. Ataque
que poderia tomar contornos apocalípticos e elitistas, tal como nestes versos
de Yeats: “…Things fall apart; the centre cannot hold;/Mere anarchy is
loosed upon the world,/The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere/The
ceremony of innocence is drowned;/The best lack all conviction, while the
worst/Are full of passionate intensity”
(The Second Coming, 1920).
Dessa forma, o Romantismo não era meramente uma reação ideológico-cultural
aos excessos racionalistas do Iluminismo, pois continha também uma faceta
social e política avessa ao capitalismo em vias de consolidação, e se confundia
com uma crítica à civilização industrial ou moderna, em nome de valores sociais
e culturais pré-capitalistas, ou, em outra direção, em nome de uma revolução
social a superar o capitalismo. O Romantismo era politicamente um Janus
bifronte, podendo se apresentar, conforme M. Löwy, ora como conservador, ora
como revolucionário, manifestando-se em figuras tão díspares quanto Burke e
Rousseau, Coleridge e Blake, Balzac e Fourier, Carlyle e W. Morris, Heidegger e
Marcuse.
Newton, William Blake (1795) |
À luz de uma perspectiva herdeira do Esclarecimento e do liberalismo, o crítico literário J. G. Merquior (1982: 188-190)
apontou insólitas convergências da crítica “contracultural” ao pensamento
científico e técnico (assim como à modernização capitalista) proposta por H.
Marcuse e outros autores da Teoria Crítica de inspiração marxista, com a
crítica conservadora da técnica moderna encetada por M. Heidegger, sendo estes
filósofos responsáveis pela reverberação de um irracionalismo de raízes
românticas dentro de setores da cultura do século XX, segundo Merquior. Ainda
conforme Merquior, a desconfiança radical em relação à ciência amiúde
andou junto com a reação ao progresso social.
Porém, o uso do termo “irracionalismo” para rotular o Romantismo
demanda uma análise mais cuidadosa, evitando-se críticas e conclusões
exageradas, como aquelas contidas na obra "A destruição da Razão” (2020),
do filósofo marxista G. Lukács. Essa obra pretendia interpretar o nazifascismo
como a longa conclusão teórica e prática do "movimento" filosófico
irracionalista" representado por Schelling, Nietzsche, Kierkegaard,
Bergson, Splenger e outros, atrelado à escalada imperialista da burguesia no
plano econômico e político. Todavia, Lukács, além de não discutir o lado
romântico e messiânico do próprio marxismo nessa obra demasiado polêmica, ao
partir de um racionalismo que parece misturar Hegel com Stálin, foi incapaz de
discutir mais profundamente o que afinal seria a razão e seu contrário, a
irrazão. Apenas sustentou, de modo vago, que o irracionalismo era uma filosofia
carente da visão da totalidade e de suas mediações, o que, a nosso ver, pode
até ser uma falta de dialética mas não de racionalidade em si, e, portanto, o
assunto demandaria uma discussão mais séria da parte do autor.
Além disso, seria um erro tremendo ver no Romantismo a gênese
exclusiva de movimentos reacionários como o nazifascismo quando, na realidade, segundo
I. Berlin, o movimento romântico inspirou inclusive a consciência liberal
moderna, na essência individualista. Em síntese, o Romantismo é uma mundividência complexa e multifacetada, e qualquer tentativa de abordá-la filosófica ou
politicamente precisa evitar o reducionismo.
BERLIN, Isaiah. As raízes do Romantismo. São Paulo: Três estrelas,
2013.
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica, In: scientiæ studia, São
Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-98, 2007.
LÖWY, Michael. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Lukács e
Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2012.
LUKÀCS, Georg. A destruição da razão. São Paulo: Instituto Lukács,
2020.
MERQUIOR, José Guilherme. A natureza do processo. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1982.
SAFRANSKI, Rudiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo:
Estação Liberdade, 2012.
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