Um adeus a Ralf Rickli (1957-2023)

"Quando menino esteve no céu...era mesmo Lutero"(A Trakl, Else Lasker-Schuller)

Ainda abalado pela perda do amigo Ralf Rickli, um verdadeiro e raro mentor pelos caminhos labirínticos da liberdade. Algumas breves palavras nesta despedida, sem dúvida aquém do que uma figura tão extraordinária mereceria. Filósofo, poeta, ativista, tradutor, humorista, provocador, tantas qualidades em uma só pessoa, tanta humanidade em um só ser.

Conhecê-lo inicialmente foi algo curioso: ele evocava uma outra era, Maio de 68 parecia que estava ali, na minha frente, mais vivo do que nunca. Tratar-se-ia de um Dom Quixote  lutando contra os moinhos de vento, a tentar fazer a roda da história girar ao contrário? Ou um extemporâneo em uma época hostil? Não, absolutamente. Conforme o conhecia, pude entender que não apenas sonhou com ou ficou preso a um tempo remoto, pois ele  viveu sua verdade existencial em cada palavra, gesto ou pegada, na mais radical coerência. Sua filosofia era sua vida, sua vida era sua filosofia. E  ele escolheu colocar sua generosa inteligência a serviço dos que sofrem, rejeitando ser um burguês de vida e de pensamento. Criou e percorreu uma estrada cheia de curvas e percalços, mas sempre destemido, digno e luminoso.

Ralf Rickli

Encontrá-lo não era uma simples nostalgia, porquanto ele tinha dentro de si uma chama rebelde inexaurível, pronta a incendiar, se preciso, o mundo inteiro. Em sua alma imensa residiam todas as revoluções e heresias, todas as contraculturas e libertarismos, e parecia carregá-las consigo como um ébrio carrega uma garrafa, pronto a transbordar o seu vinho alegre e transformador em toda taça receptiva, unicamente com sua presença anímica.

Ele era um místico, conquanto trazendo o mundo espiritual para o chão da realidade. Seu Evangelho resumia-se em liberdade e ação,  avesso a toda espiritualidade de boutique e a todo moralismo disfarçado de religião.  

Ele era sensível e amável, tanto quanto era franco, e nenhuma inverdade poderia passar incólume em sua presença. Ele queria dialogar, unir, cooperar, poetizar, porém sem jamais negociar a honestidade e a justiça.

Não parece verdade que ele tenha partido. Seu espírito ainda vibra pra mim como um canção livre, difusa no ar, talvez soe a alguns como de uma outra era, não obstante, insubstituível.

Daniel Placido

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