Pampsiquismo ontem e hoje (por Daniel Placido)

(A base para este texto foi um pequeno trabalho que escrevi para uma disciplina do mestrado na UFU)


O que é Pampsiquismo


O pampsiquismo é uma teoria filosófica antiga e ainda viva, conforme demonstraremos, cuja tese básica é a de que a consciência não é uma propriedade exclusiva dos seres humanos, tampouco é algo que emerge da matéria não-consciente, como defendem os emergentistas, mas é algo fundamental em todo universo, portanto, presente em todos os elementos básicos do mundo; em outras palavras: tudo é consciência e matéria (Cf. PESSOA JR. 2017).

O pampsiquismo é o contrário do hilozoísmo: enquanto este é uma teoria materialista que atribui à matéria (ou partes dela) poderes ou atividades psíquicas, aquele reduz a matéria a propriedades ou atributos psíquicos, sendo espiritualista (ABAGNANO, 2007: 863).

Como adverte Phillip Goff, isso não significa considerar que para os pampsiquistas tudo literalmente tem consciência, e sim que até mesmo os constituintes básicos da matéria, como elétrons e quarks, poderiam apresentar formas de experiência, ainda que simples, dentro de uma escala hierarquizada (GOFF, 2020).

 

Breve História

 

Já podemos detectar traços de pampsiquismo nos primórdios da Filosofia na Grécia. Tales de Mileto teria dito que os seres sememoventes eram dotados de mente, inclusive magnetos e pedaços de âmbar poderiam ser considerados portadores de mentalidade.

Mais tarde, Platão, em obras como O Sofista, sustentou que todos as coisas deste mundo participam do Ser, o que lhes daria um aspecto psíquico ou mental. Além disso, defendeu a existência de uma Alma do Mundo, um ser dotado tanto de alma quanto de inteligência, uma única entidade viva que contém todas as demais, como uma rede de relações (RIFFARD, 1994).  Assim, a Alma do mundo platônica é considerada intermediária entre o inteligível e o sensível, uma mescla entre eles. Ela, junto com o Demiurgo, organiza o mundo a partir das ideias eternas ou modelos. Disso se depreende que a alma não só tem um papel na criação do mundo, como está presente neste de forma universal (Ibidem).

Os neoplatônicos, mesclando o platonismo com doutrinas místicas orientais, considerarão que o universo consiste em uma emanação, em uma cadeia do Ser, do superior ao inferior: o Uno, a Inteligência e a Alma. No nível mais baixo de realidade, o mundo material.  Eles irão ponderar que existe uma simpatia ou atração de todos os fenômenos entre si, e destes com forças invisíveis, espelhando-se no céu as realidades terrestres e na terra as celestes; isso só possível porque a alma tem uma natureza universal (por exemplo Proclo, De sacrifício, 2-7).

Ulteriormente, no Renascimento, com a retomado do (neo)platonismo, elementos de pampsiquismo reaparecem em filósofos como Marsílio Ficino, que, no “Livro do Amor” (VI, 10), o relaciona à magia:

A obra da magia é uma contração de um a outro por semelhança de natureza. Entretanto, as partes deste mundo, como membros de um único animal, todos dependentes de um único autor, são conjuntamente associados por comunhão de uma única natureza.

Por isso, assim como em nós o cérebro, pulmões, coração, fígado e membros restantes atraem, por sua vez, algo para si e se ajudam mutuamente e sofrem por um que padece pelo outro, assim os membros deste grande animal, isto é, todos os corpos do mundo do mesmo modo ligados, ora um ora outro, tomam de empréstimo as naturezas e são, por sua vez, tomados de empréstimo. Do parentesco comum nasce o amor comum, e do amor, a contração comum. Logo, esta é a verdadeira magia. Assim, da concavidade do orbe da Lua, o fogo é atraído para o alto pela congruência da natureza, e também a água é tirada do seu lugar. Assim, o magneto desvia para si o ferro; o eletro, as limalhas; o enxofre, o fogo; o Sol, muitas flores e folhas; a Lua, as águas; Marte costuma incitar os ventos, e várias ervas também atraem para si vários tipos de animais (FICINO, 2017).

No século 17, os platônicos de Cambridge (como R. Cudworth), que seriam os criadores do pampsiquismo em sentido estrito, defendiam que um efeito não poderia sobrepujar a força de sua causa, então a vida, o ser, a razão e o intelecto não poderiam derivar da matéria sem vida; o espírito é o ser primeiro, o senhor natural de tudo que existe: como as coisas não derivavam da matéria, nem diretamente de Deus, existiria uma natureza plástica (ABBAGNANO, 2007: 863).

Leibniz, por sua vez, com sua monadologia, sustentou que o mundo é formado de infinitas mônadas, substâncias com existência própria e simples, sem conexão ou janelas entre si, dentro de uma harmonia preestabelecida por Deus. As mônadas, fundamentos do mundo, podem ser consideradas como mentes ou almas, e, portanto, temos aqui um pampsiquismo monadológico.

Na mesma época, Espinosa, na contramão do dualismo cartesiano, defendeu que toda natureza é uma única substância, cujos modos conhecidos por nós são pensamento (mente) e extensão. Mente e corpo formam então uma unidade, pois no ser humano a mente é a ideia de corpo, e interage com este que, por sua vez, interage com os outros corpos, formando uma teia de relações, mente-corpo.

 Neste ínterim, com poucas exceções (Schelling, Emerson, Henry Corbin), qualquer teoria próxima do pampsiquismo, assim como o conceito de Alma do mundo, parecem afastar-se da filosofia, sobrevivendo na mística e nas artes, entre os românticos e simbolistas, resistindo de modo subterrâneo ao materialismo e ao racionalismo radical.

Pampsiquismo hoje: os exemplos de David Chalmers, Philip Goff e Galen Strawson

 

Todavia, o pampsiquismo, que poderia soar inicialmente como uma teoria de natureza metafísica ou mesmo mística um tanto quanto anacrônica no atual cenário filosófico, retorna inusitadamente às discussões atuais da filosofia da mente e da filosofia da ciência, sob versões intelectualmente rigorosas, para tentar dar conta de questões como a da relação entre corpo-mente (ou matéria-mente), além de problemas de natureza epistemológica. Abordaremos, de modo resumido, três autores contemporâneos que admitem o pampsiquismo: D. Chalmers, P. Goff e G. Strawson.

David Chalmers (n. 1966), filósofo australiano, não é um defensor estrito do pampsiquismo, porém o admite como uma alternativa possível para a discussão sobre a relação mente-corpo.

Os dualistas (entre eles, o próprio Chalmers), contra os fisicalistas, usam o chamado “argumento do zumbi”: seria possível imaginar um mundo fisicamente igual ao nosso, uma réplica idêntica, mas na qual os seres (“zumbis”) não teriam consciência, apenas emulando esta (simulando sentir dor, fome, sono, desejo etc), o que demonstraria metafisicamente que a consciência não seria uma mera agregação de fatores físicos, e sim algo distinto, ainda que ligado a eles (LEONHARDT, 2019, 7-10).

Por outro lado, os materialistas ou fisicalistas usam contra os dualistas o chamado “argumento causal”. Um determinado evento teria uma explicação causal fechada, de acordo com as leis naturais, assim como os estados mentais têm correlatos físico-neurológicos. Isso valida o materialismo como uma explicação plausível que prescinde de elementos extrafísicos para explicação da mente (Idem, ibidem).


Para Chalmers, o pampsiquismo evitaria os dois argumentos extremos acima. Por exemplo, um pampsiquista monista poderia conceber que a física permite o conhecimento da estrutura da matéria e seus componentes, mas não de sua natureza intrínseca. A física não explicaria a essência de propriedades físicas como massa, carga elétrica etc., sendo essa essência fenomenal, mas apenas os efeitos relacionais dessas essências. Isso evitaria cair no caso do zumbi de Chalmers, pois o próprio organismo dele implicaria em uma experiência, assim como evitaria o argumento causal, pois o físico já seria mental ou experienciável também, ainda que a física por si não seja capaz de explicá-lo de forma completa, demando uma explicação filosófica (Ibidem).

Em Galen Strawson (n. 1952) o pampsquismo tem como base uma concepção metafísica monístico-realista assim como implica em um debate com o chamado emergentismo, conforme José Sérgio Duarte da Fonseca (DUARTE DA FONSECA, 2016: 100-103). Para Strawson é difícil conciliar a tese de que os fenômenos físicos são essencialmente não experienciais com a tese de que a consciência é um fenômeno físico concreto, pois assim ela seria experienciável e, por conseguinte, contradiria a primeira tese. O emergentismo tenta solucionar essa aparente contradição dizendo que a consciência ou mente emerge do físico, mas para Strawson não é claro como algo como a consciência emergiria de algo fisico, nem o motivo ou razão dessa emergência.  Contudo, Strawson não é um dualista, e tenta suprir essa lacuna explicativa de outra forma (Idem, ibidem).

O pampsiquismo de Strawson, à luz de um realismo monista, seria justamente uma saída para a questão, pois se não é válida a emergência do que é experiencial (consciência) a partir do que é não-experiencial (físico), é mais lógico conceber que fenômenos experienciais (uma consciência como a nossa) emerge a partir de fenômenos físicos que têm consciência também, ainda que distinta da nossa. Strawson pensa a emergência sob uma metafísica, sendo que uma consciência como a nossa emerge de consciência distintas da nossa, como aquela dos pequenos constituintes do cérebro ou corpo: ou seja, os fenômenos físicos dos quais emergem os experienciais já são eles mesmo experienciais (Ibidem).

Por fim, falaremos agora de Philip Goff. Este autor acredita (GOFF, 2020) que a consciência é uma característica fundamental do universo e sinônimo de experiência (dor, prazer, etc.). Tanto humanos quanto animais e mesmo seres inorgânicos (partículas atômicas) seriam assim dotados de consciência, porém dentro de uma hierarquia de níveis de complexidade.

Além disso, Goff acredita que a questão da relação cérebro-mente demanda uma discussão sobre o modelo galilaico de ciência emergente na modernidade. Galileu, percebendo que a consciência pressupunha uma abordagem qualitativa, deixou-a de fora da jurisdição científica, a qual deveria abordar a natureza de forma quantitativa ou matemática, e de fato conseguiu fazê-lo com sucesso. Contudo, além dessa exclusão equivocada, é um engano pensar que uma ciência puramente quantitativa poderá dar conta da questão da consciência, de caráter qualitativo. Como superar esse hiato?

Para Goff, a física só pode descrever o comportamento da matéria (por exemplo, massa e carga), seu aspecto externo, enquanto a consciência seria o aspecto interno dela. Tudo seria apenas matéria, sem uma transcendência sobrenatural, mas portadora de um dúplice aspecto, interno e externo; dessa forma, o pampsiquismo, ao postular que a consciência está em tudo por ser o lado interno da matéria, superaria tal cisão, integrando-a no campo científico (GOFF, 2020).

Claro, isso ainda é um desafio, pois a consciência não é diretamente observável, sabemos o que ela é por sermos conscientes e por dialogarmos com outros seres conscientes, e mesmo as pesquisas científicas que correlacionam, por exemplo, estados cerebrais com certos sentimentos e sensações (por exemplo, fome ou sede), não podem explicar porque essa correlação ocorre, cabendo aqui a filosofia complementar a ciência com uma teoria filosófica sobre a consciência.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo:  Martins Fontes, 2007.

DUARTE DA FONSECA, José Sérgio. Galen Strawson, Robert Hanna e a metafísica da consciência. In: Saberes: Revista Interdisciplinar de Filosofia e Educação, Natal: RN, n. Esp. Φιλoµεµα II, Jun. 2016, p. 98–111

FICINO, Marsílio. O livro do Amor: comentário ao Convívio de Platão. Tradução e edição de Ana Thereza Vieira, 2017.

GOFF, Philipp.  Does consciousness pervade the universe? Entrevista a Scientic American, janeiro de 2020, Disponível In: https://www.scientificamerican.com/article/does-consciousness-pervade-the-universe/

LEONHARDT, Gustavo Adolpho. A plausibilidade do pampsiquismo como solução para o problema difícil da consciência: uma Investigação da Metafísica Strawsoniana. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio grande do Sul, 2019. (Trabalho de Conclusão de Curso)

PESSOA Jr, Osvaldo. Arquivos Lexicográficos, 2017. Disponível In: https://opessoa.fflch.usp.br/sites/opessoa.fflch.usp.br/files/TCFC3-17-Lexico-Tudo-4.pdf

RIFFARD, Pierre. Dicionário do Esoterismo. Lisboa: Teorema, 1994, verbete Alma do Mundo.

 

 

 

 

  

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