A mística de Plotino hoje e o Vedanta (por Daniel Placido)


À luz do contexto moderno, o legado da filosofia de Plotino, especialmente o de sua mística, é discutido por diversos autores, e gostaria de iniciar este texto com um confronto entre as perspectivas distintas de dois deles: Pierre Hadot e Reinholdo A. Ullmann.

Certamente influenciado pelo marxismo e pelo existencialismo, Pierre Hadot (2019: 128-135), apesar de reconhecer a universalidade e atualidade do chamado místico de Plotino, não pode concordar neste último com a (suposta) desvalorização do mundo concreto da multiplicidade, ainda que uma desvalorização parcial, sem cair no dualismo gnóstico. O homem moderno, para Hadot, aprendeu com Marx, Freud e outros, a desconfiar de qualquer forma de conhecimento, mesmo que interno, que não leve em conta o papel das estruturas sociais, econômicas, culturais ou psíquicas (inconsciente) na sua produção. Para Hadot a mística plotínica continua válida no quadro da modernidade, mas ela precisa situar o homem dentro da pluralidade do mundo social, histórico e cultural em que existe, sem a ilusão de um saber metafísico puro, independente e atemporal.

Já Reinholdo A. Ullmann (2002: 224-225), mais próximo de uma visão de mundo religiosa ou teológica, constata justamente que foi este mundo social, histórico e cultural conhecido como modernidade, inegavelmente fragmentado, que afastou o homem moderno, em si mesmo fragmentado, de qualquer forma de transcendência mística ou metafísica. E a filosofia mística de Plotino, uma filosofia perene, seria uma espécie de cura psicológica e civilizacional para essa deficiência, em seu convite para a interioridade, unificação psicológica e para a busca da origem metafísica do homem e de tudo que existe, o Uno, para além deste mundo e do tempo.

Parecemos diante de um impasse interessante, pois o primeiro autor procura valorizar a multiplicidade em detrimento da unificação metafísica e psíquica proposta por Plotino, enquanto o segundo autor, ao contrário, procura desvalorizar a multiplicidade em função da unidade!

Essa aparente dicotomia entre interior e exterior, individual e coletivo, uno e múltiplo, é solucionada de forma inteligente por Ken Wilber, a meu ver, solução que se aplica à mística de Plotino ou a qualquer outra tradição. Influenciado tanto pelos pós-modernos quanto pelo evolucionismo, Wilber (2001; 2006) diferencia estados de consciência e estágios de consciência. Em todas as tradições de sabedoria fala-se em ascensão pelos estados de consciência, pela cadeia do Ser em termos neoplatônicos, que são, porém, estados internos subjetivos para Wilber. Mas em outro plano, o homem evolui pelos estágios de consciência, que correspondem a seu desenvolvimento cultural e social coletivo, e nesse sentido não existe conhecimento ou saber previamente dado ou totalmente independente, ele é sempre uma construção dentro de uma rede ou estrutura. Dessa forma, Wilber considera que um místico pode ser capaz de experimentar os diferentes estados de consciência, pois é um processo subjetivo, ainda que possa manter uma mentalidade cultural e social preconceituosa e limitada, pois isso é uma questão intersubjetiva e social. O ideal é existir um alinhamento entre as duas coisas, estados e estágios, dentro de uma ótica evolutiva.

Ora, voltando agora ao debate entre Hadot e Ullmann, este último está na verdade valorizando em Plotino o aspecto subjetivo, o processo de conhecimento através dos estados de consciência, que, de fato, foi perdido em parte pelo homem moderno, enquanto Hadot, sob uma ótica mais antropológica e cultural, não pode aceitar que a busca interna de unificação e autognose implique em ignorar o mundo externo e a relação do saber com ele, o que passa pelos estágios de consciência.



Ainda sobre essa questão da unidade e multiplicidade, sabe-se que Plotino, segundo Porfírio, teve interesse pela filosofia dos persas e hindus, e que sua mística tem sido comparada ao advaita Vedanta por autores como Berdiaeff, Bazan, J. Lacrosse, entre outros. O advaita Vedanta é uma tradição ainda viva na Índia contemporânea, cuja cultura não conheceu a modernização da mesma forma que o Ocidente, mantendo a unidade entre filosofia a e religião, entre razão e intuição. O homem indiano não teria conhecido a fragmentação experimentada pelo homem ocidental moderno, comentada por Ullmann, pelo menos não na mesma proporção. Não obstante, H. Zimmer (2009) dirige ao Vedanta uma crítica parecida com a crítica de Hadot à Plotino: o Vedanta, em sua busca do Absoluto, teria como pressuposto uma visão metafísica a-histórica e desencarnada do homem, contrapondo radicalmente o absoluto ao relativo.

Mas será que é isso mesmo? Lex Hixon (1992), um colega de Wilber atento à obra de Plotino e às tradições orientais, comenta que, no advaita Vedanta, são reconhecidos quatro estados de consciência do ser humano: o estado da vigília, correspondendo ao corpo físico; o estado de sonho, correspondendo ao corpo sutil; o estado de sono sem sonhos, correspondendo ao corpo causal; e haveria ainda o quarto estado, turya, que seria na verdade a Testemunha impessoal dos outros três estados, ou seja, o Atman, idêntico a Brahman. No advaita Vedanta usa-se com frequência a metáfora da tela de cinema para explicar essa questão: o Atman é a tela onde as imagens dos outros três estados se desenrolam, como um filme; nossa verdadeira identidade, o Atman, permanece puro e intocado pelos demais estados, e todo nosso sofrimento advém dessa confusão dramática entre tela e imagens, entre real e irreal. 

Contudo, Lex Hixon (1992) afirma que, na realidade, a tela (Absoluto) não é imóvel, como as imagens projetadas, ela também é dinâmica, significando com isso que o absoluto está presente aqui e agora, na vida concreta, a todo momento, e não separado dela. Ora, tendo ou não Plotino proposto uma mística escapista, que, de todo modo, na sua época de crise social e histórica parecia fazer sentido, o fato é que se tudo que existe é reflexo do Uno, então não é preciso fugir desta vida, aqui e agora, pois em sua multiplicidade e variedade a unidade originária está presente igualmente.

 

  

Bibliografia

HADOT, Pierre. Plotino ou a simplicidade do olhar. São Paulo: Érealizações, 2019.

HIXON, Lex. O Retorno à Origem: a experiência da iluminação espiritual nas tradições sagradas. São Paulo: Cultrix, 1992.

ULLMANN, Reinholdo Aloysio, Plotino: um Estudo das Enédas. Porto Alegre: Edipurgs, 2002.

WILBER, Ken. A união da alma e dos sentidos: integrando ciência e religião. São Paulo: Cultrix, 2001.

WILBER, Ken. Espiritualidade Integral - Uma Nova Função para a Religião Neste Início de Milênio. São Paulo: Aleph, 2006.

ZIMMER, Heinrich. As filosofias da Índia. São Paulo: Palas Athena, 2009.

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