Comentários às “Teses” de W. Benjamin (por Daniel Placido)
Introdução
Segundo G. Theborn (2012, p. 63-64), a tradição marxista, heterogênea
e multifacetada, oscilou em sua ênfase entre os dois polos dialéticos
(“chifres”) da modernidade, ora a realçar mais seu aspecto emancipador, ora o
seu aspecto explorador. Por exemplo, na II Internacional e no seu desdobramento
social-democrata no começo do século XX, o aspecto explorador da modernidade
foi mitigado por uma visão evolucionista e otimista a respeito da capacidade de
reação dos sindicatos e partidos operários ao capitalismo, possivelmente sob
influência do otimismo típico da Belle Epoque, logo banhado sob uma ducha
fria pela I Guerra Mundial. Em contrapartida, na corrente marxista conhecida
como “Escola de Frankfurt” foram salientados os aspectos contraditórios e negativos
da modernidade, sem o apontamento para um futuro melhor, em um contexto histórico
de ascensão do nazifascismo e do estalinismo.
Dentro do espectro da Escola de Frankfurt, vamos nos ater neste
texto às posições singulares de Walter Benjamin, a repensar a visão
materialista-marxista da História, naquela época contaminada tanto pelo positivismo
quanto pelo progressivismo naïve.
Faremos isso a partir da análise de algumas de suas concepções sobre
rememoração, sujeito e tempo histórico presentes nas Teses sobre o conceito de
História.
“Teses sobre o Conceito de História”
A obra Teses sobre o Conceito
de História foi escrita por Benjamin entre 1939 e 1940, sob perseguição
fascista. Benjamin se suicidaria tragicamente em 1940, e essa obra foi
publicada dois anos depois, no auge do horror da Segunda Guerra. Como afirma D.
Bensaid, o contexto em que Benjamin escreveu essas teses não poderia ser mais
sombrio: além do fascismo em marcha, sociais-democratas e estalinistas estavam anestesiados
com a confiança no “sentido do progresso”, na dinâmica das massas e na força
dos seus aparelhos políticos, a constituir a cultura burocrática da resignação
(BENSAID, 1999, p. 135).
Infelizmente, não há como analisar aqui todas as ricas teses do
texto benjaminiano, contudo, vamos nos deter naquelas que tratam mais
incisivamente da questão da reconfiguração do materialismo histórico, a saber:
a tese VI, sobre rememoração; a tese VII, sobre o sujeito histórico e o intérprete;
e as teses XIV e XV, sobre o tempo histórico.
Análise e observações sobre as teses VI, VII, XIV e XV
Rememoração na
tese VI. Nessa tese, Benjamin (1987) considera que, ao contrário do que
imagina o positivista, conhecer o passado não é um fato neutro e não se trata
de uma descrição objetiva e fria “daquilo que foi”, sem compromisso
ético-hermenêutico, um mero exercício frio de museologia e arquivística;
conhecer o passado é entretecer um fio rememorativo e ligá-lo ao presente,
reconstruindo-o e relembrando-o para alertar aos vivos, como mortos que ainda
falam e clamam por socorro, pois o passado também está ameaçado, não só o
presente. Assim, retomar o passado é recriar a esperança no futuro, pois a
tradição não é algo dado e morto, e sim um influxo vivo, constantemente renovado
e, ao mesmo tempo, ameaçado de ser sequestrado e instrumentalizado pela classe
dominante. Não por acaso, apesar das dificuldades desse projeto, Benjamin se
lança nele com a proposta de diálogo com os novos paradigmas teóricos da sua
época, como a concepção de tempo em Proust e a noção de Freud sobre lapso e
recalque, aplicando-as e retraduzindo-as para o domínio da história coletiva,
em busca de uma nova relação do presente com o passado, ou seja, uma narrativa
histórica que seja capaz de responder no presente às interpelações silenciadas
do passado (GAGNEBIN, 2010).
Walter Benjamin |
Sujeito histórico
e intepretação na tese VII. Benjamin propõe
na tese VII (1987) fazer uma história a contrapelo,
ou seja, uma história que não expresse unicamente o ponto de vista das classes
dominantes, dos vencedores, mas que, na contramão, se comprometa com os oprimidos,
com os vencidos e derrotados, com aquelas pessoas anônimas esquecidas e
silenciadas nos anais históricos, sob a mistificação dos grandes heróis e
grandes líderes; ou seja, trata-se de resgatar e representar as classes
subalternas e suas derrotas catastróficas.
Temporalidade nas
teses XIV e XV. Nessas duas teses, Benjamin
combate, claramente, a visão linearista e homogênea da temporalidade, como se esta
fosse uma seta fechada do passado em direção ao futuro. Não. O próprio passado
não está lacrado, tampouco o futuro, que, à luz da crença no progresso
(desmentido na época de Benjamin pela emergência da barbárie fascista), parece
previsível e inevitável, quando está longe de ser um continuum
predeterminado e acabado. O passado rememorado é, de algum modo, um agora
redivivo, o qual se mescla com o presente. E é também um aviso, uma potência
disruptiva na história aparentemente segura e fechada, na qual a classe
dominante projeta o status quo, a reprodução da dominação; a rememoração
do passado equivale a um evento messiânico, a um interromper do devir, segundo
M. Löwy (2008). E, conforme insiste D. Bensaid, Benjamin, sem a nostalgia de
Deus ou a tentação da piedade, opõe à fetichização da História, a sua
politização (1999, p. 135). O continuum
histórico pode ser assim explodido pela ação revolucionária, instaurando uma
nova dinâmica, um novo tempo, emblematizado pelos novos calendários.
Conclusão
Ao analisar algumas teses dessa obra de Benjamin, observamos uma visão marxista não-linearista da história, a qual pressupõe do intérprete (historiador, cientista social, filósofo ou outro) um compromisso ético-hermenêutico-revolucionário com os desvalidos e as classes subalternas, em especial o proletariado. Nada mais distante da míope “imparcialidade científica” dos positivistas resignados, que cria uma cortina de fumaça ideológica sobre as divisões e contradições sociais, e afasta o cientista ou intérprete de um compromisso ético e político com seu objeto de estudo, a se esperar dele uma neutralidade ou ascese aonde a escolha se faz essencial e irrenunciável. Sua visão aberta da temporalidade, através da rememoração do passado, vale de sobreaviso em tempos como o nosso, no qual se fala em “fim da História” e a vitória do capitalismo parece inquestionável e segura, levando-nos a recordar que a História está longe do seu fim, sempre sendo possível um novo salto de tigre a explodir seu continuum. Certamente o capitalismo de hoje é mais complexo do que o da época da II Guerra, assim como não se pode acreditar mais que o proletariado é o único agente da transformação revolucionária, mas uma massa crescente de desvalidos e excluídos do sistema vigente, assim como a desigualdade social crescente entre os países e dentro de cada país, cedo ou tarde farão a roda da História girar em uma direção inesperada.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de História, In: Walter
Benjamin: obras escolhidas, Vol. I. Magia, técnica, arte e política. Ensaios
sobre literatura e história. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 222-232.
BENSAÏD, Daniel. Marx, o intempestivo. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1999.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Seis teses sobre as teses. Revista Cult,
2010. Disponível In: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/seis-teses-sobre-as-teses/
LÖWY, Michael. A filosofia de Walter Benjamin, In: Revista de
Estudos Avançados, 16 (45), 2002. Disponível In: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142002000200013&script=sci_arttext
THEBORN, Goran. Do marxismo ao pós-marxismo. São Paulo: Boitempo,
2012, pp. 60-148.
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