Gnósticos, Maniqueus e Docetismo (por Daniel Placido)



Conforme Joan O’Grady, o docetismo não deve ser considerado uma seita ou grupo herético em sentido estrito, mas uma tendência que perpassou várias heresias nos primórdios do cristianismo, e cujo cerne era considerar a existência terrena de Jesus uma aparência, algo fantasmático, o que implicava em sua desumanização ou mitificação, além de considerar sua paixão e crucificação uma espécie de encenação teatral, já que seu corpo era etéreo e impassível (O’GRADY, 1994: 21 e 43). 

Essa teoria foi aceita por alguns gnósticos, conforme Ireneu de Lião (Contra as Heresias, III, 16, 1), em especial por valentinianos e marcionistas (O’ GRADY, 1994: 43, 80). Dessa forma, eles não acreditavam que o enviado divino nesta terra poderia viver e morrer como um homem comum, até porque tendiam a considerar a matéria como decaída e oposta ao domínio espiritual.

Segundo G. R. S. Mead, a concepção docética era escandalosa e inaceitável para os cristãos fiéis à ortodoxia da Igreja em formação, pois mitigava ou negava o valor sofrimento de Jesus em seu aspecto humano, cuja crucificação, morte e ressurreição física eram a base da salvação da humanidade. Todavia, Mead argumenta que a visão gnóstica não era uma negação literal do sofrimento de Cristo, pois ela tinha um outro sentido: para os gnósticos, o Logos sofria constantemente em todas as almas, pois ele morria no corpo humano e se levantava no espírito, encerrado em uma paixão eterna, com dor e prazer entrelaçados. Ademais, diz Mead que

...o gnóstico, por outro lado, não poderia acreditar que um sofrimento físico de três dias na cruz de madeira pudesse salvar o mundo. Havia milhões que sofreram isso e uma centena de torturas piores. Para o gnóstico, o drama da Paixão foi típico dos mistérios espirituais profundos, a 'história' foi uma 'apresentação' típica - uma 'demonstração' da eterna realidade da Paixão Cósmica, a Paixão do Logos, ou Homem Divino, feito carne no homem. (apud GOODRCIK-CLARKE, 2007: 154-155).

Elementos de docetismo podem ser encontrados igualmente no maniqueísmo, uma síntese única de cristianismo gnóstico, zoroastrismo e budismo. Conforme afirma G. Filoramo (2005: 185), no maniqueísmo a figura de Jesus deve ser considerada sob um tríplice aspecto: a) a figura mítica encarregada pelo Pai da "quarta missão", ou seja, a da reconquista da luz, transmitindo a Adão a mensagem libertadora e instituindo-a como missão soteriológica permanente; b) a figura mítica de "Jesus patibilis", também chamada de "cruz de luz" em alguns textos, que é a alma do mundo formada por todas as partículas de luz cativas na matéria; c) a figura histórica de Jesus Cristo, o Filho do Pai, dispondo, contudo, de um corpo espiritual, ou seja, docetismo (cf. O’GRADY, 1994: 80).



Apesar do docetismo ser afirmado pelo maniqueísmo (aspecto c), este não negava literalmente o sofrimento de Jesus Cristo (aspecto b), mas dava a ele uma dimensão muito maior, cósmica, pois as partículas-almas de luz, aprisionadas por Ahriman na matéria, deveriam ser libertadas um dia e continuavam a sofrer enquanto esse dia não chegava. 

De acordo com C. Jambet (2006), seu mestre Henry Corbin, nessa linha de argumentação docético-gnóstica, considerava a crucificação de Cristo como um evento imaginal, e assim dotado de um sentido sempre novo e inesgotável. Enquanto na visão historicista do cristianismo exotérico a paixão é colocada como um acontecimento único e sem repetição, tendo seu sentido engolido pela ruína do devir histórico, na versão gnóstico-docética a paixão ocorreu, ocorre e continuará ocorrendo, em um sentido que engloba toda a criação -- e é revivida pelo gnóstico, a cada vez de uma forma nova enquanto aparece como fenômeno à consciência visionária. 

Em outras palavras, para concluir, gnósticos e maniqueus não queriam negar literalmente o valor da paixão de Cristo, e sim encará-la como ela é: um evento infinito, eterno e plurissemântico, com ressonâncias cósmicas, inseparável da dor inerente à criação.










Bibliografia

CORBIN, Henry. Manichéisme et religion de la beauté, 1981. Disponível In:

http://manicheism.free.fr/maniblog/corbinbeaute.pdf

FILORAMO, Giovanni. Monoteísmo e dualismos: as religiões de salvação. São Paulo: Hedra, 2005.

GOODRICK-CLARKE, Nicholas, GOODRICK-CLARKE, Clare. G. R. S. Mead e a busca gnóstica. São Paulo: Madras, 2007.

IRENEU DE LIÃO. Contra as heresias. São Paulo: Paulus, 1995.

JAMBET, Christian. A lógica dos orientais: Henry Corbin e a ciência das formas. Rio de Janeiro: Globo, 2006.

O’GRADY, Joan. Heresia: o jogo de poder das seitas cristãs nos primeiros séculos. São Paulo: Mercuryo, 1994.

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