"Oráculos caldeus", teurgia e neoplatonismo (por Daniel Placido)

 

Os Oráculos caldeus são um conjunto de versos relacionados com a teurgia e foram disseminados a partir dos séculos II-III EC. Tal material chegou até nós em uma condição fragmentária, citado por autores como Proclo, Damáscio, Psellos e Plethon.

Os Oráculos não foram tomados como simples textos autorais, e sim como mensagens divinas reveladas através de transes místicos, cujos veiculadores seriam Juliano pai, o caldeu, que teria vindo da Caldeia ou da Síria para Roma, e seu filho homônimo Juliano, o teurgo, figuras possivelmente contemporâneas do imperador e filósofo estóico Marco Aurélio (século II EC).

Nos Oráculos ocorre a busca da salvação da alma através da recepção de uma inspiração divina e da prática de ritos tradicionais, com uma linguagem mágico-simbólica para invocar os deuses, que, por sua vez, transmitiriam mensagens mediante transes místicos (KÖRBES HAUSCHLID, 2018: 52-53). As ideias presentes nos Oráculos têm afinidade com o platonismo tardio, e circularam em um ambiente cultural comum ao gnosticismo, hermetismo e papiros mágicos.

De acordo com Brian Copenhaver (2000: 32-33), as entidades centrais nós Oráculos são o Primeiro Intelecto Paternal, transcendente, e depois um outro Intelecto, o Demiurgo, que procede daquele. Por sua vez, a figura de Hécate é considerada um poder feminino presente dentro do Primeiro Intelecto, correspondendo assim à Alma do Mundo; ela opera como mediadora entre as influências que circulam entre o inteligível e o sensível.  

Entrementes, na região periférica do universo está a Matéria, a qual foi criada pelo Demiurgo. Assim como no orfismo – que ressoa em Platão – e no gnosticismo, na visão teúrgica o mundo material é interpretado como uma tumba impura, uma prisão sepulcral da qual a alma superior precisa fugir através de uma disciplina ascética e do ritual correto, livrando-se das forças astrais do Destino e protegida das influências de poderes demoníacos que estão entre os deuses e os mortais.

Tradução em espanhol dos Oráculos


A teurgia dos Oráculos foi tão influente sobre o neoplatonismo que Olimpiodoro chegou a dividir a corrente neoplatônica em função dela: Porfírio, Plotino e outros teriam colocado a filosofia em primeiro lugar, enquanto Jamblico, Siriano e Proclo teriam colocado a arte hierática (ou seja, a teurgia) em primeiro lugar (apud BAZÁN, 1993: 40, n. 39).

  Apesar de Plotino ignorar os Oráculos devido à sua tendência filosófica mais especulativa e pouco religiosa ou ritualística, Porfírio na verdade os aceitou parcialmente, acreditando, contudo, que não seria possível atrair os deuses com práticas teúrgicas.

Em contrapartida, a teurgia dos Oráculos causou profundo impacto sobre Jamblico, discípulo de Porfírio que discordou do mestre, ao dizer que:

             ...A união teúrgica é produzida com o cumprimento de ações inefáveis que agem acima de toda possibilidade de compreensão da inteligência e do poder dos símbolos inefáveis, compreensíveis somente aos Deuses. Por isso, não é com o pensamento que realizamos aquelas obras...os próprios sinais operam por virtude própria, cumprem a atividade que lhes é peculiar, e o poder inefável dos Deuses, aos quais são dirigidas essas obras, reconhece por si mesmo as próprias imagens sem ser despertado pela atividade do nosso pensamento...(De mysteriis, II, 11, apud REALE, 2008: 166)

             Essa valorização da teurgia continuou mais tarde em Proclo, o qual diz na Teologia Platônica:

         ...E as visões integrais, imutáveis e simples se revelam às almas por meio dos deuses mantenedores, a partir do alto, a partir do lugar supraceleste. Explica-se: é nesse lugar que aparecem os símbolos místicos dos deuses inteligíveis, assim como as Belezas incognoscíveis e indizíveis dos caracteres. E, de fato, a iniciação e a epopteia são símbolos do silêncio indizível e da união com os inteligíveis por meio das visões místicas...no decorrer da mais secreta de suas iniciações, os teurgos mandam que a pessoa enterre seu corpo, menos a cabeça. Ora, é exatamente isso que Platão nos diz, a pedido dos próprios deuses...pois o estado puro designa simbolicamente para nós a Luz inteligível. (PROCLO, IV, 9, 2023: 51-52)

             Com o fechamento da Academia platônica de Atenas no século VI EC, a teurgia parece ter desaparecido por um longo inverno, retornando no período medieval em Bizâncio com Psellos e, já na Renascença, com Plethon. Este considerou os Oráculos como “persas” e escritos por Zoroastro, tese aceita por Ficino e outros. Enfim, o resgaste mais contemporâneo dos Oráculos, inclusive nos meios esotéricos, está relacionado com pesquisas de autores como Thomas Taylor, W. W. Westcott   e G. R. S. Mead.

 

 

Bibliografia

 

BAZÁN, Francisco García. Oraculos Caldeos (Con uma selección de testimonios de Proclo, Pselo Y M. Itálico) & Numenio de Apamea (Fragmentos y Testimonios). Madrid:Editorial Gredos, 1991.

 _______________________. El cuerpo astral. Barcelona: Ediciones Obelisco, 1993.

COPENHAVER, Brian. Corpus Hermeticum y Asclepio. Madrid: Ediciones Siruela, 2000.

KÖRBES HAUSCHILD, Álvaro. Os Oráculos Caldeus: contexto histórico e filosofia. Codex--Revista de Estudos Clássicos, 2018. 6(1), 51-74.doi:https://doi.org/10.25187/codex.v6i1.14999

PROCLO. Sobre a teologia de Platão. São Paulo: Polar editora, 2023, volume IV.

REALE, Giovanni. Plotino e neoplatonismo. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

 

 

  

 

 

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