A crítica de Husserl ao positivismo (por Daniel R. Placido)

Introdução

Neste texto, abordaremos e reconstruiremos os pontos principais da crítica do filósofo alemão Edmund Husserl ao positivismo, à luz da obra Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, ou Ideias I (original de 1913). Mas o que foi o positivismo enquanto filosofia?

O positivismo teve como precursores filósofos como Condorcet e Saint-Simon, que, apesar de já abraçarem uma visão de mundo na direção do cientificismo e do evolucionismo histórico, mantiveram uma visão crítica da sociedade de sua época.

Mais tarde, um ex-aluno conservador de Saint-Simon, Auguste Comte, publicou de modo paulatino a obra Curso de Filosofia Positiva, entre 1830-1842. A filosofia positivista de Comte era marcada por uma visão evolucionista da história, com um esquema subjacente de três estágios evolutivos: primeiro o estágio mítico-teológico, em que os seres humanos acreditavam em seres e forças sobrenaturais que deviam ser agradadas; depois o estágio metafísico, correspondendo à emergência da filosofia, em que explicações religiosas do mundo foram substituídas por explicações racionais; e, finalmente, o estágio positivo, correspondendo ao surgimento da ciência moderna, capaz de explicar o mundo de forma inequívoca e comprovar seus resultados através de testes e experimentos.

Como a ciência era considerada a forma superior de conhecimento, capaz de intervir sobre a realidade, deveria ser o modelo a ser seguido por todas as outras formas e áreas do saber humano. Os cientistas teriam como aliados os grandes industriais, detentores do conhecimento técnico, e deveriam se unir para reorganizar a sociedade de forma conservadora, o progresso a partir da ordem. Em termos de base teórica para sustentar tal projeto, seria criada a física social (posteriormente, chamada de sociologia), que explicaria as leis de estabilidade e dinâmica sociais assim como a física explicava as leis da natureza.

Em obras posteriores, e de maneira surpreendente, Comte avançou na direção de uma visão mais religiosa e humanista, alegando que o positivismo implicava no surgimento de uma nova religião para a humanidade, em que Deus seria substituído pela Razão e pelo Homem, enquanto os apóstolos e profetas da nova fé seriam os cientistas e eruditos de outrora. Esta última evolução religiosa do pensamento de Comte seria rejeitada por positivistas posteriores como Herbert Spencer e John Stuart Mill.

No começo do século XX, o positivismo reapareceu na forma do neopositivismo (ou empirismo lógico), confundindo-se com os trabalhos e ideias do Círculo de Viena, do qual participaram figuras como Philipp Frank, Otto Neurath, Hans Hahn, Moritz Schilick, Rudolf Carnap, Hans Reichenbach, Kurt Gödel, entre outros. Ele pode ser considerado uma radicalização do positivismo de Comte, à luz das contribuições oriundas da lógica de Frege, Russell e Peano, da nova física de Planck, Einstein e Bohr, além da filosofia da linguagem de Wittgeinstein.

Os neopositivistas colocaram a ciência empírica como o modelo de ciência, cabendo à filosofia o papel secundário de reflexão sobre teoria do conhecimento, enquanto os enunciados metafísicos da filosofia clássica eram rejeitados como vazios de sentido, meros falsos problemas decorrentes de um uso ambíguo da linguagem, que deveria ser depurada à luz da análise lógica. Curiosamente, o positivismo lógico foi rejeitado por figuras muito próximas dele, como Popper, que apesar de sua crítica ao marxismo e à psicanálise como não-científicas, não negou a legitimidade de certas questões metafísicas.

Husserl e sua crítica ao positivismo em Ideias I

Husserl foi praticamente um contemporâneo do neopositivismo, e, não por acaso, o tema da crítica ao (neo)positivismo aparecerá em várias de suas obras. Para ele, tratava-se de contestar a concepção vigente e quase unânime de ciência entre os intelectuais, a positivista, bem como reinterpretar o papel da filosofia em relação a esta, como que “limpando o terreno” para a fenomenologia. Em  Ideias I (original de 1913), obra que escolhemos para esta análise, Husserl não diferenciará claramente positivismo e empirismo, possivelmente pelo entrecruzamento constante das duas concepções, tornando difícil e mesmo desnecessário uma diferenciação mais profunda entre ambas.


Husserl fez uma crítica em função de uma defesa da própria fenomenologia como posição metodológica coerente e producente. Em síntese, ele enxergou no positivismo-empirismo um non-sense, pois apesar deste afirmar nada pressupor, a não ser a experiência, a partir da qual os juízos e enunciados devem ser construídos, não questiona os elementos implícitos em teses como essa, tornando-se um edifício erguido com base em preconceitos sutis, sem clarificação de seus alicerces, e tolo em sua pretensão de única via possível para o conhecimento científico; ademais, sua recusa de essências é pueril e cega, pois as pressupõe, mesmo quando, da boca para fora, afirma negá-las categoricamente.

Como é natural, Ideias I é um livro reconhecidamente extenso e denso, e não temos condições aqui de acompanhar cada passo e articulação da argumentação husserliana; para os fins de nossa análise, bastante modesta, escolhemos como recorte os parágrafos 18-26 dessa obra, os quais tratam mais do tema ora abordado: a crítica de Husserl ao positivismo e empirismo.

a) Por que a crítica ao empirismo e ao positivismo?

Sem sequer pressupor algo como a “filosofia”, Husserl em Ideias I (§18) chegou à conclusão de que a fenomenologia pura deve ser uma ciência de essência, lastreada na intuição. Ora, a controvérsia com o empirismo (sinônimo aqui de positivismo) se dá porque este nega as ideias, as essências, assim como o conhecimento delas. O empirismo-positivismo se tornou a posição hegemônica no maistream científico-natural, até mesmo unívoca (inclusive entre os psicólogos). Existe nisso, para Husserl, uma hostilidade temerária contra as ideias, que constitui um óbice contra a fundamentação eidética (ainda em curso) das ciências, assim como a formação (eventual) de novas ciências eidéticas.

b) Como surge o naturalismo empirista?

Para Husserl em Ideias I (§19), o leitmotiv do naturalismo empirista é digno de consideração, apesar de acabar por gerar confusões: o empirista afirma os direitos da razão autônoma contra os “ídolos” que obstruem o conhecimento (clara alusão a F. Bacon), ou seja, contra a tradição e a superstição. Para o naturalista-empirista, judiciar racional e cientificamente sobre as coisas implica em “retornar às coisas mesmas”, à sua doação originária, livre de preconceitos. Toda ciência tem que sair da experiência para formar o conhecimento mediato a partir da experiência imediata. Logo, o empirista estipula: ciência autêntica é igual à ciência empírica. Diante disso, as “ideias”, “essências”, em oposição aos fatos, seriam – aos olhos do empirista- uma imensa fantasmagoria metafísico-escolástica, da qual a ciência moderna nos teria libertado. A ciência genuína lidaria apenas com o efetivamente real, passível de experimentação – e o que não se enquadra nisso é tomado como imaginação, e, portanto, objeto de uma ciência imaginária. Na melhor das hipóteses, a imaginação seria restrita ao campo da psicologia, enquanto fato psíquico, sem se admitir uma visão de essência calcada na imaginação seria fundante de dados novos, eidéticos.

Para Husserl, tudo que o empirista diz é sustentado em mal-entendidos e preconceitos, apesar do seu impulso inicial ser legítimo e admirável. O erro de largada do empirista é confundir o “retorno às coisas mesmas” com a exigência de fundação de todo conhecimento pela experiência, supondo, sem mais, que a experiência é o único ato que doa as próprias coisas. Ora, diz Husserl, esse não é de modo algum um ponto óbvio e assente que as “coisas” sejam as “coisas naturais”, que, no sentido corriqueiro, efetividade seja efetividade em geral e, enfim, que a “experiência” se refira somente à “efetividade natural”.

Ora, Husserl considera que existe uma falácia na pressuposição empirista, sendo em si uma construção especulativa a priori quase ao estilo idealista: apesar de exigir ausência de preconceitos, e rejeitar “juízos estranhos à experiência”, afirma que todos os juízos se fundam na experiência sem antes ter estudado a essência dos juízos, em toda sua variação e diferenciação. A posição empirista não é nada óbvia tampouco isenta de infiltrações teóricas sub-reptícias. Ora, os juízos diretamente válidos assim o são, segundo Husserl, porquanto tiram sua validade de intuições originariamente doadoras, só que tais intuições são tais quais as prescreve o sentido desses juízos – a essência própria dos objetos e do estado-de-coisas submetido ao juízo.

O ver imediato ou geral (não apenas o ver empírico ou sensível), como consciência doadora originária, é a fonte última de legitimação das afirmações racionais. Ver um objeto com clareza, explicá-lo e apreendê-lo conceitualmente na visão efetiva, é ver a índole do objeto, garantindo-se destarte a autenticidade do enunciado que o exprime. Não se trata de “experiência”, e sim de algo mais geral ainda: a intuição.

c) Teses do empirismo: incoerência e carência de clarificação

Para Husserl em Ideias I (§20), as teses fundamentais do empirismo carecem de discussão, clarificação e fundação mais precisas, e tal fundação teria de estar em consonância com as normas e regras imanentes em suas teses – mas isso não ocorre.

Identificar ciência em geral com a ciência empírica, assim como contestar o pensar eidético puro, leva ao ceticismo radical – o qual, suicídio filosófico, implode a si mesmo. Husserl não cita, mas lembramos aqui, de nossa parte, do ceticismo extremo em que caiu D. Hume, e no “problema da indução”, recorrente até em Popper.

É preciso perguntar ao empirista qual a validade geral de suas teses, pois a experiência direta, na qual se funda, trata apenas de singularidades. Por outro lado, o empirista nega a evidência eidética, recorrendo à indução, aos modos mediatos de inferência, tentando com isso obter proposições gerais. Mas, pergunta Husserl, a “verdade estabelecida” por inferência mediata (dedutiva ou indutivamente) é ela mesma experimentável-perceptível, ou é algo que foge a tal âmbito (contradizendo-se)? E os princípios que estruturam e asseguram os modos de inferência (como os princípios silogísticos), que os legitimam logicamente, são generalizações empíricas, ou algo extra-empírico (novamente, gerando uma contradição)?

Husserl afirma que uma fundamentação científico-empírica realmente congruente teria como exigência partir dos casos singulares, teórica e rigorosamente fixados, passando aos casos gerais segundo métodos rigorosos, aclarados por uma evidência de princípio – o que os empiristas não fazem, a não ser em termos retóricos.

Para Husserl, o modo de realmente evitar os preconceitos sorrateiros é partir daquilo que precede todo ponto de vista: a esfera do que é dado intuitivamente, do que pode ser apreendido imediatamente, antes de todo pensar teorizante. Por isso Husserl fará a afirmação surpreendente de que sua posição representa o verdadeiro “positivismo”: a fundação – isenta de preconceitos- de todas as ciências no que é “positivo” ou apreensível de modo originário.

As espécies de intuição são fontes de legitimação de todo conhecimento. Porém, perduram certos equívocos, ainda. Há cientistas naturais os quais, por exemplo, afirmam que noções gerais e óbvias (como a proposição “a+1=1+a”) são “expressões de fatos empíricos”, quando – com plena evidência – é reconhecível que tais expressões “trazem à expressão explicativa dados de intuição eidética”.

d) Confusões dos positivistas e dos cientistas naturais

Segundo ainda Husserl em Ideias I (§25), o positivista – influenciado pela sofística empirista- recusa em sua reflexão filosófica as “essências”, mas, não obstante, na orientação normal da ciência natural age e se deixa guiar (mesmo sem vê-lo) pelas evidências de essência: disciplinas matemáticas puras são fundamentais na teorização das ciências naturais e tais disciplinas não procedem empiricamente, nem tampouco se fundam em observações. Apesar de recusarem nominalmente as essências, os positivistas não escapam delas.

O empirista poderia ainda objetar desta forma: a origem dos conhecimentos matemáticos em última análise está no conjunto diluído e amplo de experiências e impressões acumuladas pela espécie humana, ao longo de sucessivas gerações, como um hábito infundido, e daí deriva-se nossos conhecimentos geométricos. Husserl opõe-lhe tais dúvidas: como podemos reivindicar tais “tesouros”, se eles não foram observados cientificamente, nem registrados sob tal crivo? Desde quando experiências difusas, esquecidas e hipotéticas, sem um exame criterioso e efetivo, poderiam fundar alguma ciência (e justamente a mais exata das ciências, a matemática)?

O empirista ainda poderia dizer que as evidências geométricas se devem à imaginação (em sentido psicológico), e que induzimos a partir de experimentos imaginários. Husserl responde: nenhum físico poderia fazer experimentos meramente na imaginação, os quais seriam, justamente, experimentos imaginativos, e nada mais, assim como figuras e quantidades na imaginação não são efetivas – e sim imaginadas.

Para finalizar, Husserl sustenta que para sabermos o que um axioma matemático enuncia é preciso se voltar para a consciência, na qual, quando operamos matematicamente, apreendemos com evidência plena os estados-de-coisas axiomáticos. Se nos atemos à intuição pura, é indubitável: os axiomas expressam puros nexos de essência, sem a intromissão do empírico. Se o conhecimento das gerações pretéritas nos legaram decerto disposições cognitivas, tal “estoque” e sua história não são tão relevantes para a questão do sentido e valor dos nossos conhecimentos.

 

Bibliografia

CARNAP, Rudolf, HAHN, Hans & NEURATH, Otto. A concepção científica do mundo- O Círculo de Viena, In: Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Série 1, V. 10, 1986.

COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva, In: Os Pensadores. Em: Os Pensadores. São  Paulo  :  Abril  Cultural, 1983

LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen. São Paulo: Cortez Editora: 1994.

HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Aparecida: Idéias & Letras, 2006.

POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix, 1977.

 


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