Nota sobre monoteísmo e politeísmo (por Daniel Placido)


Edward Butler (2021) considera que o termo “teologia”, criado por Platão e Aristóteles, inicialmente se referia à uma pluralidade de deuses, à luz do politeísmo, e não tem relação com um Deus único criador, tal como a teologia posterior irá entendê-lo. Ainda que exista uma reflexão de matiz platônica sutil sobre o Uno, este não se confunde com uma unidade numérica, tampouco com o Ser, nem com qualquer objeto, sendo na verdade o princípio de individuação que permite a multiplicidade, sem relação com a concepção  teológica de um Deus único.


Em uma linha de pensamento análoga, Henry Corbin (2003) faz uma crítica interessante à visão monoteísta na obra “Paradoxo do monoteísmo”. Corbin considera que o monoteísmo puramente exotérico e catafático, em sua tentativa de racionalizar o mistério divino em termos teológicos, leva à morte niilista de Deus. A visão sobre o Deus-uno, para ser aceitável, pressupõe acompanhamento de uma teologia apofática que, através de uma teosofia, mantenha inefável e vivo o mistério divino, na qual, ademais, o Uno não é entificado e não exclui, assim, o múltiplo. Essa critica é ainda mais interessante ao considerarmos que Corbin era protestante e dedicou sua vida ao estudo do esoterismo nas tradições originadas em Abraão, em cujo núcleo convergente via o sentido do mito do Graal.




O tema também é abordado por Jan Assmann na obra “O preço do monoteísmo” (2021), na qual defende que o surgimento do monoteísmo, ou seja, “a distinção mosaica”, significa uma ruptura revolucionária na história das religiões, tratando-se de uma tradição ao mesmo tempo exclusivista e universal, incapaz de co-existir com outras no mesmo espaço religioso, implicando, ao contrário do politeísmo, em exclusão e heresia de outras narrativas e concepções.


Concordo que o politeísmo, por exemplo , o helênico, de fato pode ser considerado essencialmente pluralista, já que co-existiu e mesmo assimilou elementos de diversas tradições, sobretudo as de origem oriental, mas, devido à polêmica aberta contra o cristianismo (especialmente Plotino, Porfírio e Juliano), talvez isso revele o limite de sua abrangência. Por outro lado, o cristianismo, conforme tornou-se a religião oficial no Império romano, acabou por proibir outros cultos e tradições, inclusive ao fechar a Escola Platônica.

Ainda para Assmann, uma tentativa ulterior de suspender a distinção mosaica levou ao surgimento da Filosofia Perene de Marsilio Ficino e outros autores renascentistas, já que implicitamente aceitaria que o passado pagão antes do cristianismo não poderia ser anulado, e então as múltiplas tradições se equilibram, porque derivam da mesma fonte, de forma linear ou não.

Contudo, a meu ver, nem mesmo a Filosofia Perene consegue dar conta de contradições, divergências e irredutibilidades entre as tradições e dentro delas, resultando em uma unidade artificial e arbitrária, quando não em puro ecletismo teórico. A solução mais modesta, em minha opinião, seria aceitar as diferenças entre tradições e procurar criar um espaço comum de diálogo e convivência sem a pretensão de identidade. Isso é possível através da teologia comparada, da filosofia intercultural e do ecumenismo. Trata-se de encontrar elementos de comparação e convergência entre tradições, assim como ressaltar as diferenças, sem a tentação de encontrar algum tipo de fundamento metafísico único subjacente a todas elas.

 

Bibliografia

ASSMANN, Jan. O preço do monoteísmo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2021.

BUTLER, Edward. A polêmica contra o politeísmo. Anãnsi: Revista de Filosofia, [S. l.], v. 2, n. 2, p. 208–221, 2021. Disponível em: https://revistas.uneb.br/index.php/anansi/article/view/13462

CORBIN, Henry. La paradoja del monoteismo. Madrid: Losada, 2003.

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