O que é o Vedanta? (por Daniel Placido -versão corrigida)
Conforme Usarski (2021) e Knott (1998),
a complexa tradição das escrituras sagradas hindus pode ser dividida em duas
categorias básicas: a) Shruti (aquilo que é ouvido): são textos considerados
revelações divinas, sem uma autoria humana, como os Vedas, os Brahmanas, os
Aranyakas e os Upanishades; b) Smriti (aquele que é lembrado): textos
essenciais mas que não têm o mesmo status da Shruti, como os épicos
Mahabharata (incluindo a Bhagavad Gita) e Ramanaya, Puranas, Sutras etc.
Como pondera Usarski (2021), os Vedas
são formados em grande parte por hinos, divididos tradicionalmente em
coletâneas: Rig-Veda, Sama-Veda, Yajur-Veda e Atharva-Veda. Entre 800-500 AEC,
com a evolução do próprio hinduísmo, surgiu a coletânea de textos aforísticos
conhecida como Upanishades. Eles seriam frutos de ambientes esotéricos em que discípulos
sentados recebiam a instrução de um mestre também sentado mas um pouco acima
deles.
Aqueles Upanishades que têm maior
relevância filosófica são o Brihadaranyaka, Chandogya, Isha, Kena, Katha,
Prashna, Mundaka, Mandukya, Taittiriya e Aitareya. Cada um dos Upanishades é,
por sua vez, associado a um dos quatro Vedas (Usarski, 2021).
Dessa forma, os Upanishades são considerados o “fim dos Vedas”, "Vedanta", tanto no sentido de serem sua porção última, como no sentido de alcançarem sua meta ou finalidade, a liberação.
Sob outro ângulo, chama-se de "Vedanta" uma das seis escolas ortodoxas ou pontos de vista (darsána) do hinduísmo, cujo texto de referência é o Brahma Sutra (ou Vedanta Sutra ou Uttara Mimamsa Sutra), atribuído a Badarayana e composto por volta de 200 AEC. Esse texto tem como objeto central a investigação sobre Brahman, vinculada ao renunciante em busca de libertação (Flood, 2014).
Além do Vedanta, os demais darsána considerados ortodoxos, aqueles que reconhecem a revelação dos Vedas, são: Yoga (relacionado a
Patanjali), Samkya (relacionado a Kapila), Vaishêshika, Nyaya e Mimansa (este, relacionado a Jaimini). Já as escolas
consideradas heterodoxas, ou seja, que não reconhecem a autoridade dos Vedas,
são: budismo (relacionada a Siddharta Gautama, o Buddha), jainismo (relacionada
a Mahavira) e Lokayata (Flood, 2014).
Conforme Lúcio Valera, estas são as principais discussões internas ao Vedanta:
Quanto à natureza das almas individuais (jīvas), apresenta-se a controvérsia de serem elas idênticas com Brahman ou uma realidade distinta que se relacionam de al-guma forma com Brahman. Em relação à natureza do universo, a controvérsia foca na questão dele ser uma manifestação ilusória de Brahman, em decorrência de avidyā “ignorância”, ou uma re-alidade que tem Brahman como sua causa. No tema do meio (sādhana) que conduz a Brahman, a questão que se apre-senta é se o conhecimento intuitivo (aparokṣa jñāna) é o meio direto para a libertação (mokṣa) ou se a devoção (bhakti) ou meditação (upāsanā) em Brahman implica direta-mente em mokṣa. Agora, em relação à natureza na Meta Suprema (parama puruṣārtha), surge a questão se a alma após a libertação do cativeiro material torna-se una com Brahman ou se desfruta de bem-aventurança de relacionar-se com Brahman sem perder a sua individualidade (Lúcio Valera, 2021).
Dessa forma, as diferentes subescolas vedantinas darão respostas distintas às questões colocadas em tela. Quais são elas?
Principais Subescolas do Vedanta
Advaita Vedanta
Conforme Flood (2014), o advaita Vedanta
é mundialmente o sistema filosófico mais conhecido da Índia, e defende a
primazia do uno sobre o múltiplo, sustentando que a Realidade é não-dual
(“advaita”). Seu maior filósofo é Shankara (possivelmente do século 9 EC),
discípulo de Govinda, por sua vez discípulo de Gaudapada. As obras mais conhecidas de Shankara são
estas: Comentários ao Brahma Sutra, ao Brhadaranyaka Upanishade, ao Taittiriya
Upanishade, ao Bhagavad Gita, além do Upadesasahasri (Os Mil Ensinamentos), do
Saundaryalahari (hino à Deusa) e de um Comentário à Karika de Gaudapada. O
Vivekachudamani, obra muito conhecida, tem sido questionada atualmente como de
autoria de Shankara.
Para Shankara e a escola do advaita
Vedanta, nossa verdadeira natureza, o Atman, é idêntica a Brahman, a realidade
absoluta, mas uma superimposição (adhyasa) do não-eu ao Self provoca nossa
ignorância, impedindo o reconhecimento e a realização da verdade. Para superar
isso, o indivíduo deve, assim, praticar a discriminação e o desapego, para
alcançar a libertação (Flood, 2014).
Shankara até reconhece um nível
básico de devoção a Deus pessoal (Isvara), porém Brahman em sua essência última
está além dos atributos e qualidades (nirguna), e só nesse âmbito é possível
realizar a identidade originária entre ele e o Atman. Nessa perspectiva última,
jiva (a alma individual) e o mundo também são considerados ilusórios ou parte
de maya (Flood, 2014) .
Depois de Shankara (imagem acima), podem ser ainda citados
como expoentes do advaita Vedanta: Mandanamisra (Suresvara?), Vacaspatimisra
(século X EC) e Sri Harsa (século XII EC). Mais recentemente, destacam-se nomes
como o de Ramana Maharshi (século XX).
Aupadhika-Bhedabheda
Escola de Batta Bhaskara (séculos X e
XI EC?), autor de comentários ao Brahma Sutra. Conforme Lucio Valera (2021),
para Baskara, tanto a unidade quanto a pluralidade são reais. Durante a
existência e a criação cósmica, a unidade e a pluralidade estão em
“diferença-e-não diferença” (bhedabheda), mas durante o estado causal de
Brahman, durante a salvação e dissolução universal, estão em completa
identidade. As almas individuais no estado de samsara são diferentes de Brahman
devido aos upadhis (adjuntos limitantes) como o corpo, a mente ou os órgãos
sensoriais, mas no estagio de libertação, em que eles não estão presentes, a
alma individual torna-se idêntica a Brahman. O mundo, da mesma forma, na sua
criação seria igual-diferente a Brahman, mas idêntico a ele em sua dissolução.
Visistadvaita Vedanta
Conforme Flood (2014), esta é uma escola
sob a influência da tradição Vaisnava, conhecida como não dualismo qualificado
(visistadvaita), e seu principal representante é Ramanuja (1017-1137), autor de
comentários ao Brahma Sutra, à Bhagavad-gita e do Vedanta Samgraha.
Ramanuja opôs-se à leitura monista da
escola advaita de Shankara, argumentando que esta contradizia tanto a razão quanto
as escrituras. Para Ramanuja, Brahman (alma suprema) é a essência de todo
universo, é um ser pessoal e está presente em cada alma finita. Deus é perfeito
e imutável, mas sua pessoalidade não co-existe com um aspecto superior e
impessoal como em Shankara. Tanto o uno quanto o múltiplo são ontologicamente
reais. A alma pessoal é diferente de Deus mas participa dele, pois Deus é a
essência e controlador da alma, sendo que esta depende dele. Já o universo é o corpo de Deus e
manifestação plural de seu poder (Flood, 2014).
Dvaita Vedanta
De acordo com Flood (2014), esta
escola é representada sobretudo por Madhva (século XIII EC), tratando-se de uma
interpretação dualista (dvaita) do Vedanta.
Existe uma diferença (bheda) ontológica entre a alma individual e Deus.
Cada coisa no universo existe por si e é irredutível em sua unicidade. A alma
individual é diferente de Deus; as almas são diferentes entre si; Deus é
diferente da matéria; a alma individual é diferente da matéria; e os fenômenos
materiais são diferentes entre si.
Por outro lado, tudo depende do Deus
supremo e incognoscível em sua essência, que está presente no interior da alma
e na matéria. A libertação consiste em
participar da beatitude de Deus, através da devoção e da graça recebida dele
(Flood, 2014).
Para concluir, evidenciando a grande
diversidade interna do Vedanta, também podem ser citadas de passagem outras
subescolas, como a Visista-Saivadvaita de Srikantha, a Svabhavika-bhedabheda de
Nimbarka, a Sudgadvaita de Visnusvami e Vallabha e Acintya-bhedabheda de
Caitanya.
Bibliografia
USARSKI, Frank. O que é hinduísmo.
São Paulo: Lafonte, 2021.
KNOTT, Kim. Hinduism: a very short
introduction. New York: Oxford University Press, 1998.
FLOOD, Gavin. Uma introdução ao
hinduísmo. Juiz de Fora; Ed. UFJF, 2014.
VALERA, Lúcio. Vedanta Darsana:
estudo introdutório do Vedanta. Pindamonhangaba: Núcleo de Estudos
Bhaktivedanta, 2021.
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