Sobre Aristóteles, Deus e a teologia (por Daniel Placido)

 

Introdução

            Aristóteles muitas vezes tem sido apresentado como o paradigma do filósofo racionalista, quando não um materialista e ateu, alguém alheio à religiosidade, em contraste com seu mestre Platão, um filósofo claramente de inclinação espiritual e reivindicado pelos místicos de todos os tempos.

Por exemplo, mais recentemente, Foucault (2006) na sua A Hermenêutica do Sujeito colocou Aristóteles como uma exceção dentro do quadro da Antiguidade, já que, ao contrário de pitagóricos, (neo)platônicos, cínicos, estóicos e outros, não teria tido uma preocupação explícita com a espiritualidade, ou seja, com o autoconhecimento e com o cuidado de si.

            Todavia, acreditando-se na autenticidade do “testamento” de Aristóteles citado por Diógenes Láercio, segundo Enrico Berti (2022), o Estagirita, na realidade, praticava os rituais religiosos dos helênicos da época. É, assim, verossímil pensar que Aristóteles era um pagão politeísta que, se recusava os exageros da religiosidade popular, como um típico intelectual, tampouco a negava ou censurava, conforme Berti (2022).

            À luz dessas questões iniciais, procurei fazer algumas leituras para investigar melhor o assunto da teologia em Aristóteles, e compartilho, de forma resumida, alguns pontos que identifiquei sobre o tema até o momento.

 

Aristóteles e a teologia

           

            Em textos mais juvenis como o Sobre a Filosofia, Aristóteles já demonstrava interesse pela questão da divindade: “Onde há um melhor, há um que é o melhor, ora, entre as coisas existentes, uma é melhor do que a outra; portanto, há uma que é a melhor, que deve ser a divina.” (Fr. 1476b22-24)

            Já na Metafísica (E, I, 1026a18-23) Aristóteles identifica que a teologia tem por objeto a realidade mais elevada, a divina:

 Consequentemente, seriam três as filosofias teóricas: a matemática, a ciência da natureza e a teologia (pois não desprovido de evidência que, se o divino se encontra em alguma parte, se encontra nessa natureza de tal tipo), e é preciso que a mais valiosa seja a respeito do gênero mais valioso. (trad. Lucas Angioni)

 

Teologia aqui parece ser, portanto, sinônimo de filosofia primeira. Como considera Giovanni Reale (2012), essa teologia também é identificável com a “metafísica”, expressão que se não foi usada por Aristóteles, serve muito bem, já que a realidade divina está além do mundo físico. Logo, teologia, metafísica e filosofia primeira seriam sinônimos, apesar de alguns comentadores de Aristóteles (como Enrico Berti) questionarem tal identificação (MIRANDA FILHO, 2020).



            Stoll (2023), por sua vez, considera que em Aristóteles o termo “teologia” tem, na realidade, um sentido duplo, um positivo e outro negativo. O sentido positivo seria a teologia enquanto área da filosofia, que tem como objeto de investigação racional o ser divino. Já o sentido negativo, seria a teologia dos “antigos teólogos”, poetas como Homero e Hesíodo, que interpretaram o divino em termos míticos ou não-racionais.

 

O deus de Aristóteles

            Em termos filosóficos ou teológicos, o deus de Aristóteles se identificaria com o primeiro motor imóvel, movendo ou atraindo para si todas as coisas, sem ser movido ou atraído por nada, já que ele é o primeiríssimo. Esse deus ou primeiro motor é ato puro, já que é perfeito, e tem em si realizada toda sua potencialidade.

Ademais, esse deus seria também consciente e pessoal, enquanto pensamento do pensamento é consciente de si mesmo, e nisso similar ao Nous dos neoplatônicos, porém absolutamente transcendente ou indiferente ao mundo, já que é absolutamente perfeito, imaterial e eterno. Tal deus não era acessível através da oração ou da meditação, perdido em sua eterna solidão e exilado dos pobres mortais.

            Como Enrico Berti (2002) enfatiza, por mais que Aristóteles tenha sido apreciado e mobilizado pelos teólogos cristãos, existe uma diferença enorme aqui entre seu pensamento e o cristianismo. Ao deus de Aristóteles não caberia sequer o uso do artigo definido nem da letra maiúscula, enquanto ao Deus cristão sim, um Deus pessoal que está intimamente ligado aos humanos, a ponto de enviar seu Filho a este mundo para redimi-lo.

            Ademais, esse deus aristotélico não criou o mundo, pois o mundo e a matéria são eternos, havendo no máximo uma organização da estrutura cósmica e não sua criação propriamente dita.

             Haveria ainda em Aristóteles, para concluir, uma possível “teologia astral”, já que os corpos celestes e as estrelas seriam, assim como o mundo, seres eternos, feitos do quinto elemento, o éter, e nesse sentido as inteligências que os movem e governam seriam similares aos deuses, daí um politeísmo implícito também a ser discutido. Mas não aqui e agora.

 

 

Bibliografia

BERTI, Enrico. O que herdamos da filosofia grega. Entrevista de janeiro de 2022, Disponível In: O que herdamos da filosofia grega. Entrevista com Enrico Berti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

ANGIONI, Lucas. Aristóteles: Metafísica Livros IV e VI. Textos Didáticos: IFCH/Unicamp, n. 45, setembro de 2001.

ARISTOTELE. The Metaphysics. Mineola, New York: Dover Publications, 2007.

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MIRANDA FILHO, Francisco Marques. A metafísica de Aristóteles não contém uma teologia racional: estudo sobre os argumentos de Enrico Berti, In: Revista Contemplação, n. 23, 2020.

STOLL, Renan Eduardo. A teologia em Aristóteles, In: Hypnos, n. 51, 2023.

REALE, Giovanni. Introdução à Aristóteles. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

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