Docetismo e imaginal em H. Corbin (por Daniel Placido)


Com base na leitura de C. Jambet (A lógica dos orientais. SP: Globo, 2006, pp. 294-297), um discípulo do filósofo e orientalista francês Henry Corbin, o docetismo consistia na crença de alguns gnósticos antigos, assim como dos maniqueus e dos cátaros, de que Jesus não teve um corpo carnal comum, porquanto ele seria dotado de uma espécie de corpo fantasmático, espiritual ou angélico e que, portanto, sua Paixão na cruz não foi algo “real” tampouco “doloroso”. Na melhor das hipóteses, foi um teatro. Justamente nesse aspecto a heresiologia católica vislumbrou no docetismo gnóstico uma negação radical e inaceitável do sofrimento redentor de Cristo assim como uma rejeição de sua natureza realmente humana-corpórea-mortal, insistindo, contra ele, na centralidade histórico-teológica da Paixão crística e da co-humanidade de Jesus.



Crucifixion (Corpus Hypercubus) (1954), de Salvador Dalí

Contudo, existem sutilezas nessa discussão sobre o docetismo, e o pensamento de H. Corbin, exposto por C. Jambet, ajuda-nos a lançar novas luzes sobre ela, a partir do conceito de imaginal. O mundo imaginal é o mundo intermediário da Alma do Mundo platônica que, sob a teosofia islâmica de Sohravardî e Ibn ‘Arabî, torna-se o mundo da Imaginação ativa ou criadora. Mundo situado entre o físico-sensível e o mundo inteligível, das puras formas ou ideias, o imaginal é o mundo das formas criadoras e criativas, da imaginação plástica, ao mesmo tempo objetivo e subjetivo. É neste mundo que as formas se singularizam, infinitamente, e é também o mundo dos fatos e acontecimentos visionários e espirituais, dos anjos, espíritos, das cidades de esmeralda, das teofanias, angelofanias etc. O imaginal é transhistórico, porém contém uma abertura de sentido para a história comum, além de possuir uma temporalidade e espacialidade próprias, múltiplas. É o que alguns teosofistas chamaram de "mundo astral".



A bem da verdade, à luz do conceito de imaginal recuperado por H. Corbin na teosofia islâmica, o docetismo gnóstico ganha um outro significado, sem esquecer que os gnósticos do Islã também eram docetas, apesar de não serem dualistas, pois o Corão igualmente não aceita de modo literal a concepção da crucificação de Jesus. Para Corbin o docetismo não é simplesmente uma negação da realidade da Paixão, já que esta última é um acontecimento imaginal, portanto, ontologicamente real. Contudo, trata-se de uma realidade transistórica, que não ocorre uma única vez, mas que se repete singularmente como evento fenomenológico para a consciência visionária do gnóstico, paradoxalmente, com um sentido sempre presente e novo, por assim dizer, inesgotável.

Ora, na concepção historicista cristã, cuja apoteose é, segundo Corbin, o hegelianismo, a Paixão de Cristo é um evento capital que ocorreu uma única vez, sem repetição, no qual o Infinito se finitizou dentro da humanidade mortal, e capaz assim de concentrar uma imensa dor consigo, mas com seu sentido "assimilado" pela "ruína" da marcha da História universal. A Paixão aconteceu, redimiu e foi suprimida no horizonte histórico dentro de uma visão linear da temporalidade. Em contrapartida, na versão gnóstica, docético-imaginal, a Paixão de Cristo ocorreu e ainda ocorre, sob uma conotação de dor que se identifica não só com um indivíduo ou com um fato histórico passado,  e sim com um drama de dimensões cósmicas, pois toda a criação (eis a Cruz de Luz dos maniqueus, identificada com Jesus) carrega consigo essa dor, e que constantemente pode ser "revivida", a cada vez de um jeito novo, dentro da alma do gnóstico.


*Este texto havia sido publicado na Revista Mística Revolucionária, porém ela saiu do ar.

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