"A História do Diabo": uma leitura gnóstica (por Daniel Placido)

 

Em seu clássico ensaio filosófico “A história do Diabo” (original de 1965), Vilém Flusser (1920-1991), filósofo tcheco-brasileiro, parte de visão teológica aparentemente católica sobre o Diabo e os sete pecados capitais -- gula, luxúria, avareza, orgulho, preguiça, inveja, ira --, para estabelecer uma concepção do assunto que, a meu ver, não só é protobudista  -- e o autor sabidamente era interessado em zen-budismo, por influência de seu amigo A. Bloc --, mas também gnóstica, o que não é de estranhar, pois o livro faz alusões sutis ao maniqueísmo, antiga religião persa, a qual pretendia sintetizar de modo original zoroastrismo, cristianismo gnóstico e budismo.

O Diabo (ou melhor, o Demiurgo gnóstico) é o príncipe deste mundo transitório e material, pois Flusser o identifica com a criação, com o tempo, com a historicidade, enfim, com a natureza imanente. Ademais, ele é o tecelão dos fios que capturam o homem em uma rede ilusória, afastando-o (e mesmo ocultando sua existência) do plano transcendente e intemporal, o verdadeiro plano divino, o que lembra bastante a ideia gnóstica do Deus verdadeiro como outromundano, transcendente e não-criador. Na pura imanência inexiste felicidade duradoura, nem salvação possível, e o Diabo-Demiurgo faz o homem (seu cúmplice, é claro!) mergulhar e afogar-se cada vez mais nas águas obscuras da matéria e do devir, perdido em seu fluxo infindo.



Na verdade, segundo Flusser, a história do Diabo astuto e dos pecados se confunde com a história do desenvolvimento da civilização ocidental, com seu afã tecnológico, humanista, cultural e evolucionista, quando na verdade não existe possibilidade de “melhoria” do mundo material e cambiante, tampouco do homem, encarados à luz da pura imanência. Humanistas, antropocentristas, tecnocratas, evolucionistas e afins, mesmo quando imbuídos de boas intenções, são agentes inconscientes do Demiurgo ou do Diabo, prorrogando as ilusões de felicidade, poder e salvação dos homens dentro de uma perspectiva falsa e distorcida, segundo o autor.

Os gnósticos de outrora desconfiavam de uma salvação apenas terrena, social ou política do homem, a partir do mote jesuânico, “Meu Reino não é deste mundo”, e assim, atualizando a mensagem gnóstica, hoje se oporiam em muitos sentidos aos reformadores sociais, humanistas, evolucionistas e, em suma, aos que acreditam na salvação meramente imanente-humanitária do homem -- a meu ver, como bom neognóstico que é, Flusser também faz isso, neste grande e impactante ensaio.

Haveria, então, algum tipo de saída, de salvação gnóstica para o homem, ou o autor apenas defende uma postura irônica perante o Diabo? O Diabo não é uma espécie de anti-herói da perspectiva humana, já que através dele o homem pode experimentar a dialética do espaço e do tempo?   Ah, isso é um assunto que deixarei em aberto por ora.

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