H. Kelsen sobre o "gnosticismo" em Voegelin
![]() |
Hans Kelsen |
“A especulação gnóstica, tal como a religião de Mani, se remete à oposição entre os reinos do bem e do mal, da luz e das sombras, do mundo espiritual e do material. Em princípio, é o mesmo dualismo que o das esferas espiritual e temporal aceito na doutrina da Igreja medieval, com a diferença de que a especulação gnóstico-maniqueísta mostrava uma tendência tão forte a identificar a esfera material da vida humana quase por completo com o reino do mal, e a opô-la em grau tão radical com o espiritual – a única esfera divina em sua concepção -, que essa esfera material podia ser considerada, de alguma maneira, desdivinizada. Se o movimento questionado é o que na história da religião em geral se denomina de gnosticismo, seu propósito é justamente o contrário do que Voegelin atribui ao que ele chama de gnosticismo. O gnosticismo histórico não divinizava senão melhor [dizendo] desdivinizava, por suposto não o mundo ou a sociedade, senão a esfera material da vida humana.
Ainda que Voegelin dedique grande parte do seu estudo à suposta influência decisiva do gnosticismo na civilização moderna, é muito impreciso a respeito do uso que dá ao significado desse termo. Em nenhuma parte define com clareza ou caracteriza de maneira precisa o movimento espiritual ao qual chama de gnosticismo. Não faz referência a Cerinto, Carpócrates, Basílides, Valentino, Bardesanes, Marcião nem a nenhum outro líder das seitas gnósticas pertencentes aos primeiros séculos da era cristã. Designa como ‘ a primeira expressão clara e completa da ideia’, que ele considera a função essencial do gnosticismo, quer dizer, a redivinização da sociedade, a obra de Joaquim de Flora, um monge e teólogo místico que viveu na segunda metade do século XII (1145-1202), cerca de mil anos depois do florescimento do gnosticismo histórico. Voegelin não oferece nenhuma citação literal da obra a que atribui a influência decisiva na formação da modernidade. Basta-lhe incluir títulos de algumas monografias de recente publicação que tratam sobre este autor e uma caracterização geral de sua ideia central...”
(Hans Kelsen, “Una nueva ciencia de la política?: Réplica a Eric Voegelin”. Buenos Aires: Katz Editores, 2006, pp. 169-170, tradução nossa do excerto)
Comentários
Postar um comentário