William Blake: gnose e liberdade - por Daniel Placido
Aleister Crowley, no Liber XV: a Missa Gnóstica, insere o poeta e pintor inglês W. Blake (1757-1827) na linhagem santa da gnose, ilustremente acompanhado por Bardesanes, Valentino, Boehme, Goethe, Nietzsche e outras figuras esotéricas [1]. Sem sombra de dúvida, William Blake pertencia a uma linhagem heterodoxa de místicos cujas afinidades eletivas com o gnosticismo antigo eram inegáveis, não tanto na questão metafísica e cosmológica, mas em termos de rejeição da moralidade tradicional e da institucionalização religiosa.
Blake foi tanto um homem profundamente religioso e místico quanto um rebelde em termos morais e políticos. Isso porventura pode surpreender à primeira vista, no entanto, como uma vez escreveu G. Scholem (2015), essa atitude é comum em alguns místicos porquanto, na procura pelo fundamento último das tradições, podem considerar que, a partir de sua experiência espiritual, estão acima das instituições e autoridades cimentadas sobre elas e que podem demoli-las sem nenhuma condescendência.
E essa era justamente a posição de Blake, um artista visionário radical convicto da veracidade das revelações que recebia e do sentido de sua missão profética, a ponto de julgar que o anúncio do advento espiritual do Juízo Final e da Nova Jerusalém por Swedenborg em 1757 não coincidia por acaso com seu ano de nascimento (CHURTON, 2015).
Tamanha era a aversão de Blake por instituições religiosas dogmáticas e moralistas que chegou a dizer, na obra O casamento do Céu e do Inferno, que “As masmorras são erguidas com as pedras da Lei; os bordéis, com os tijolos da religião” (2007: 21). Além da denúncia da hipocrisia religiosa, Blake apontava (2007: 27) que o clero surgiu historicamente quando os deuses dos mitos poéticos antigos foram abstraídos mentalmente de seus objetos imanentes à natureza e que, dessa forma, os homens começaram a ser manipulados e esqueceram que os deuses habitavam em seus corações.
Pari passu a essa crítica das instituições religiosas, Blake proporá, antes de Nietzsche, uma alternativa ao dualismo metafísico e moral, típico da tradição platônica e cristã no Ocidente, sob a consideração de que corpo e alma não são opostos, que o corpo na verdade é uma forma concreta da alma perceptível aos sentidos, e que a Energia é a força vital que emana dele (2007: 16-17). Se alma e corpo são partes de um mesmo todo, o corpo, e tudo inerente a ele como o sexo e o prazer, também é sagrado. A partir disso, Blake demole a repressão sexual e moral erigida em nome da religião cristã, como no poema “O Jardim do Amor”, em Canções da experiência, no qual um jardim de prazeres e delícias carnais se torna um cemitério vigiado por padres sombrios que censuram os desejos e alegrias do corpo (BLAKE, 2011).
Blake, contudo, apesar de seu ataque impiedoso à visão religiosa tradicional, não irá negar Jesus tampouco o cristianismo; ao contrário, fará uma reinterpretação deles. Conforme Claudio Willer, o Jesus de Blake era muito diferente da imagem clássica do Galileu, pois não era humilde, casto, gentil ou filho de uma Virgem. Ele apenas pregou o perdão aos pecados, ou melhor, a revogação da própria noção negativa de pecado, conforme o poema Evangelho eterno (WILLER, 2012a). O Jesus blakeano, às vezes simbolizado pelo Tigre no lugar do Cordeiro, representa o Filho a romper as cadeias da autoridade do Deus Pai em nome da liberdade.
Nesse sentido, encontramos aqui um paralelo verossímil de Blake, ulteriormente, com Nietzsche, o qual criticará o cristianismo como uma invenção do apóstolo Paulo, um platonismo para o povo, enquanto Jesus Cristo, em contrapartida, teria sido um “santo anarquista” que só pregou o perdão dos pecados e jamais cogitou na criação de uma nova religião (GIACOIA JR, sd).
Ademais, coerente com a sua concepção filosófica, Blake sustentará a noção de um cristianismo libertário no poema Jerusalém:
Não sei de nenhuma outra Cristandade e de nenhum outro Evangelho a não ser a liberdade de ambos, corpo & mente, para exercer as Divinas Artes da Imaginação, Imaginação, o Mundo real & eterno do qual este Universo Vegetal não passa de uma sombra fugidia, & no qual viveremos em nossos Corpos Eternos ou Imaginativos quando estes Corpos Mortais Vegetais não mais existirem. Os Apóstolos não conheciam nenhum outro Evangelho. (apud WILLER, 2012 b).
Na passagem acima, além de ressonâncias do platonismo ao falar de sombras da realidade, aparecem elementos claros da teosofia de Boehme quando, por exemplo, Blake discorre sobre o mundo imaginal como fundamento da Natureza física e sobre a construção de um corpo imaginal. tecido pela Imaginação, que sobreviverá à morte do corpo físico.
O cristianismo libertador e imaginativo de Blake colocava-se também além de formas religiosas restritivas, e era, dessa forma, genuinamente teosófico. No poema “A Imagem divina”, de Canções da inocência, Blake pondera, inspirado em Swedenborg, que a forma humana em sua origem é divina e universal (trata-se da figura de Albion), e que, assim, todos aqueles que a adoram e exercem o perdão, independente da religião, têm com certeza a morada de Deus dentro de si. Nas palavras de Blake (2011): “....E amar a forma humana devem todos,/Sejam pagãos, turcos, judeus;/Onde habitam Clemência, Amor, Piedade,/Ali também habita Deus".
*Publicado na revista 777Notas
1- Disponível em: https://quetzalcoatl-oto.org/biblioteca-thelemica/liber-xv-a-missa-gnostica/
Referências bibliográficas
BLAKE, William. O casamento do céu e do inferno & outros escritos. Porto Alegre: L&PM, 2007.
______________. Canções da inocência e da experiência, 2001. Trad. Renato Sutanna.
CHURTON, Tobias. Jerusalém: a verdadeira vida de William Blake. São Paulo: Madras, 2015.
GIACOIA JR, Oswaldo. Nietzsche e o cristianismo, revista Cult, sd. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/nietzsche-e-o-cristianismo/
SCHOLEM, Gershom. A cabala e seu simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2015.
WILLER, Claudio. Jesus Cristo por William Blake, 2012a. Disponível em: https://claudiowiller.wordpress.com/2012/09/20/jesus-cristo-por-william-blake/
________________. Mais William Blake, 2012b. Disponível em: https://claudiowiller.wordpress.com/2012/09/21/mais-william-blake/
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