Rudolf Steiner e as EQMs


Com base em sua pesquisa espiritual independente, Rudolf Steiner (1861-1925)  descreveu, no começo do século XX, o (suposto) estado do ser humano entre a morte e um novo nascimento. Por exemplo,  na palestra “Man Between Death and Rebirth” (1909), Steiner considera e expõe em detalhes o percurso da alma após a morte até um novo nascimento. 

Segundo Steiner, imediatamente após morrer, a alma contempla toda a sua vida passada como um grande panorama, no qual os acontecimentos aparecem simultaneamente, de forma clara e objetiva, sem envolvimento emocional. Esse “quadro mnemônico”, fruto do desprendimento do corpo etérico em relação ao corpo físico, permite que a essência espiritual de cada experiência seja preservada.

Depois desse momento, a alma entra no estado chamado kamaloka, ou “reino dos desejos”, o mundo astral. Nessa etapa, ela revive sua vida em ordem inversa, mais rapidamente, experimentando interiormente os efeitos que suas ações causaram aos outros, tanto sofrimento quanto alegria. Esse processo tem função purificadora moral e anímica: desejos, impulsos e hábitos ligados ao corpo astral são trabalhados e dissolvidos, permitindo que apenas os elementos espiritualmente elaborados, como intenções morais e forças positivas, permaneçam.


Com a purificação concluída, a alma se desprende dos resíduos astrais e passa para o devachan, o mundo espiritual, um plano pleno e consciente. Nesse âmbito, ela participa ativamente das forças criadoras do cosmos e entra em contato direto com ideias, verdades espirituais e seres superiores. Steiner descreve o Devachan como estruturado em três “reinos” espirituais, correspondentes aos estados sólido, fluido e aéreo, que simbolizam diferentes níveis de realidade espiritual, desde formas constantes até sentimentos e processos vivos. Nesse ambiente, a consciência da alma se expande, e ela desenvolve órgãos espirituais adequados ao novo plano em que se encontra.

Durante sua permanência no devachan, a alma assimila profundamente os frutos de suas experiências passadas e, com base nisso, elabora o arquétipo espiritual de seu próximo corpo. Quando chega o momento de retornar à vida terrena, realiza um processo inverso ao da morte: une-se progressivamente aos novos corpos astral, etérico e físico. No instante em que se une ao corpo etérico, tem uma breve visão prévia de sua futura existência, que pode gerar impactos sutis no desenvolvimento da nova vida. Assim, segundo Steiner, entre morte e renascimento a alma vive uma sequência ordenada de contemplação, purificação, elevação espiritual e preparação consciente para a próxima encarnação.

A partir dos anos 1970, com os trabalhos pioneiros de Raymond Moody ("Vida após a vida"), ampliaram-se os estudos científicos sobre relatos das chamadas experiências de quase-morte (EQMs em português), e chama a atenção a similitude delas com algumas teses de Steiner. 

Pessoas que estiveram, durante um intervalo de tempo, como "mortas", devido a complicações cirúrgicas, acidentes ou outros fatores excepcionais, retornaram e fizeram relatos depois que, apesar das diferenças de detalhes, coincidem, fortalecem a ideia de continuidade da consciência após a morte, e podem ser resumidos assim:

Sensação de paz e desligamento – a pessoa sente calma profunda, ausência de dor e percebe estar se afastando do corpo físico.

Separação e observação – sensação de flutuar, muitas vezes vendo a própria cena clínica ou do acidente de fora, com percepção lúcida.

Túnel e luz – deslocamento rápido por um túnel ou escuridão em direção a uma luz intensa, acolhedora e inteligente.

Encontros espirituais ou familiares – comunicação (muitas vezes mental) com seres luminosos, figuras religiosas ou entes falecidos.

Revisão panorâmica da vida – revivência acelerada dos principais acontecimentos, com compreensão emocional ampliada das próprias ações.

Limite ou ponto de não-retorno – percepção de uma fronteira simbólica (porta, rio, linha) que, se cruzada, significaria a morte definitiva.

Retorno ao corpo – volta súbita ou guiada, frequentemente acompanhada de resistência inicial ou sensação de “encaixe abrupto”.

Consequências posteriores – mudanças duradouras na personalidade e visão de mundo, como menor medo da morte, maior espiritualidade e empatia, mas também possíveis dificuldades de adaptação.

As coincidências, especialmente na parte da revisão panorâmica da vida pregressa, são suficientes para um aprofundamento dos estudos e reelaboração de concepções filosóficas e científicas.

Curiosamente, Harold Bloom, na obra "Presságios do Milênio", comenta a respeito da popularidade das pesquisas sobre EQMs,  servindo de base para grupos e movimentos religiosos New Age, lamentando, contudo, que são uma versão empobrecida de concepções mais ricas presentes em tradições como o sufismo, gnosticismo, budismo, cabala e outros. 

A nosso ver, mesmo que simplificado, esse interesse é positivo e revela uma abertura atual para a recuperação de visões sobre o mundo espiritual, na contramão do materialismo hegemônico, como Steiner havia predito que aconteceria em nossa época.


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