Excerto de Marsilio Ficino - Tradução
De Christiana Religione (1473) - Preâmbulo
"A sabedoria eterna de Deus determinou que os mistérios divinos, ao menos nos primórdios da religião, fossem tratados somente por aqueles que são amantes da verdadeira sabedoria. Por isso, sucedeu que, entre os antigos, os mesmos homens investigavam as causas das coisas e, diligentemente, ofereciam sacrifícios à causa suprema das próprias coisas; e esses mesmos eram, entre todas as nações, ao mesmo tempo filósofos e sacerdotes. E isso de modo algum era inadequado. Pois, uma vez que a alma — como concorda o nosso Platão — só pode alçar voo de retorno à pátria e ao Pai celestes por meio de duas asas, a saber, o intelecto e a vontade, e que o filósofo se apoia sobretudo no intelecto, enquanto o sacerdote se apoia na vontade; e uma vez que o intelecto ilumina a vontade, enquanto a vontade inflama o intelecto, segue-se que aqueles que, pela inteligência, primeiro descobriram o divino (quer o tenham encontrado por si mesmos, quer a ele tenham chegado por inspiração divina), pela vontade foram também os primeiros a prestar-lhe o culto correto, a difundir o seu culto verdadeiro e a transmitir a outros a razão desse culto.
Assim, os profetas dos hebreus e os essênios inclinavam-se simultaneamente à sabedoria e ao sacerdócio. Entre os persas, os filósofos, por estarem encarregados dos ritos sagrados, eram chamados Magos (isto é, sacerdotes). Os indianos consultavam os brâmanes tanto acerca da natureza das coisas quanto acerca da purificação das almas. Entre os egípcios, matemáticos e metafísicos assumiam o sacerdócio e a realeza. Entre os etíopes, os gimnosofistas eram ao mesmo tempo mestres de filosofia e prelados da religião. A mesma tradição vigorou na Grécia sob Lino, Orfeu, Museu, Eumolpo, Melampo, Trófimo, Aglaofemo e Pitágoras. O mesmo se deu na Gália sob o governo dos druidas.
Quem pode ignorar com que zelo pela sabedoria e pelos ritos sagrados se distinguiram Numa Pompílio, Valério Sorano, Marco Varrão e tantos outros entre os romanos? Por fim, quem não sabe quão grande e quão verdadeira foi a doutrina entre os antigos bispos e sacerdotes cristãos? Ó tempos felizes, que conservaram íntegra essa inteira união divina entre sabedoria e religião, sobretudo entre os hebreus e os cristãos! Ó tempos, por fim, absolutamente miseráveis, quando ocorreu o funesto divórcio de Palas e Têmis! Que abominação! Assim, o sagrado foi entregue aos cães para ser dilacerado! Pois a doutrina foi, em grande parte, confiada aos profanos e, desse modo — como acontece na maioria das vezes — tornou-se instrumento de iniquidade e de devassidão, sendo mais propriamente chamada de “astúcia” do que de “conhecimento”. As mais preciosas pérolas da religião, contudo, são frequentemente manuseadas pelos ignorantes e pisoteadas como se por porcos. Com efeito, muitas vezes parece que essa administração inepta, nas mãos de homens ignorantes e covardes, deve ser chamada antes de “superstição” do que de “religião”.⁶ Desse modo, eles não compreendem fielmente a verdade que, sendo divina, resplandece apenas aos olhos dos piedosos.⁷ Por mais que se esforcem, tais homens ou adoram Deus de modo incorreto ou administram mal os ritos sagrados, uma vez que são inteiramente ignorantes das coisas humanas e divinas.
Até quando suportaremos esta dura e miserável condição de uma idade de ferro, senhores, cidadãos da pátria celeste e habitantes da terra? Roguemos — quanto antes — que, se nos for possível, libertemos a filosofia, dom sagrado de Deus, da impiedade. Mais ainda: podemos fazê-lo, se apenas quisermos. Redimamos com todas as nossas forças a fé santa da execrável ignorância. Por isso, exorto a todos, e suplico aos filósofos, no que lhes cabe, que tomem a religião a sério ou que a ela cheguem; mas suplico aos sacerdotes que se inclinem diligentemente à busca da sabedoria legítima. Eu mesmo não sei quanto realizei ou realizarei neste assunto. Contudo, tentei, e não cessarei de tentar, não confiando em minha própria e limitada habilidade, mas na clemência e no poder de Deus.
Benévolo Lourenço, teu avô, o grande Cosme, depois teu piedoso pai Pedro, sustentaram-me com seus recursos desde a tenra idade em que pude pela primeira vez dedicar-me ao exercício da filosofia. Recentemente, como é teu costume em muitas outras matérias, por tua própria vontade uniste em mim — tanto quanto esteve ao teu alcance — o zelo pelo filosofar ao dever da piedade. Com distinção, honraste o teu Marsilio Ficino com o sacerdócio. Oxalá eu nunca tenha, nem venha jamais a, faltar comigo mesmo, pois nunca me faltaram o favor e o auxílio do próprio Deus e dos Médici!
Quando fui iniciado nos ritos sagrados do sacerdócio, compus a obra Sobre a Religião Cristã para melhor obter para mim a graça divina, agradar-te e não falhar comigo mesmo. Julguei oportuno dedicar-te este tratado, a ti, sustentáculo de minha vocação, não apenas como supremo guardião da sabedoria, mas também como supremo cultivador da piedade."
FICINO, Marsilio. On The Christian Religion. Tradução de Dan Attrell, Brett Bartlett e David Porreca. Toronto: University of Toronto Press, 2022, pp. 47-48
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