Comentário sobre a Enéada I: 8 de Plotino, parte final (por Daniel Placido)
Primeira parte do comentário que fiz sobre a Enéada I: 8 de Plotino:
https://theosophiaperennis.blogspot.com/2022/03/comentario-eneada-i-8-de-plotino.html
Continuando, segunda e última parte:
8. Mesmo quem, de modo imediato, pondere que o mal não é
provocado pela matéria, e sim por formas impressas no sensível, como o calor,
frio, sabores, as quais causam desejos e opiniões errôneas em nós, ainda terá
de aceitar que os efeitos produzidos pelas qualidades não existem separadamente
da matéria, assim como a forma do machado, sem a matéria concreta, não realiza
nada. Além disso, as formas presentes na matéria não são as formas ou
arquétipos em si mesmos, mas razões formativas materiais, e que foram, assim,
corrompidas pela matéria. A forma do fogo em si não queima nem realiza mal
algum; apenas a forma-fogo presente no sensível pode queimar. A forma
verdadeira é o arquétipo, e a razão formativa uma espécie de simulacro. A
matéria como “derruba” estes "logoi", os enegrece, suja, corrompe.
Quem pensa ser o corpo a causa dos males, terá porém de reconhecer que é a
matéria neste último quem o faz. Em seu apelo ético-espiritual, Plotino mais
uma vez nos alerta para fugirmos da matéria, assim como dos corpos e dos vícios
associados a eles.
O mal primário é a imensurabilidade, o mal secundário, o vício, o imensurado;
aquele é a escuridão, e este, o escurecido. Analogamente, o Bem primário é o
Uno, e o bem secundário, a virtude, a qual é imitação/participação do Uno ou
Bem, e por isso consiste na unificação/simplificação da alma, sua intimidade
com o intelecto, e a consequente fuga do corpo, do vício e da materialidade.
9. Plotino formula uma questão: como conhecemos realmente os males, se formos
pessoas virtuosas, e assim não participamos dos vícios nem somos maus? Ele
apresenta uma analogia elucidativa: com uma régua (ou padrão de medida) sabemos
o que é reto, e por exclusão, o que não é reto (mesmo sem precisar obter
diretamente um objeto não-reto); assim podemos imaginar o mal por abstração ou
privação: aquilo que não temos, conhecemos pela falta, sem precisar participar
diretamente dele.
Se somos virtuosos ou bons, como podemos conhecer a matéria, se em si ela não
tem forma? Novamente, abstraindo as formas dos seres e coisas materiais; o
resíduo ou substrato último é a matéria (ou melhor, não é!). A pessoa viciosa é
como um cego, o qual perdeu sua luz imanente, e seu intelecto foi corrompido
pela matéria; já o virtuoso – momentaneamente saindo do intelecto – pode
conhecer apofaticamente o que está fora dele e lhe é contrário: como alguém que
desviasse em um momento o olho da luz, “vendo” a escuridão, porém sem vê-la ou
adentrar nela.
10. Se a matéria é sem qualidade, como podemos chamá-la/qualificá-la de “má”?
Não é isso um disparate? Ora, a matéria não é a qualidade ou uma qualidade, e
sim o substrato para as qualidades ou acidentes ocorrerem. Ela portanto não tem
qualidades, e é precisamente a ausência de qualidade e de forma (vale dizer, o
mal).
11. O contrário da forma é a privação, que não é em si, mas em outro; logo, o
mal não existirá por si mesmo, mas estará em outro. Conjectura Plotino, se o
mal estiver na alma, a privação (do bem) será nesta última o vício. O mal seria
a privação de bem inerente à alma. Mas logo desmente essa hipótese, arguindo
que a alma em si é boa, não tendo privação interna de bem. A alma não é o mal
primário, nem o mal primário está nela como um acidente. O mal (enquanto
princípio) é externo à alma.
12. Se alma é em essência boa, poderíamos pensar que o vício nela existente é
alguma privação do bem, e que a alma seria, portanto, um misto de bem e de mal.
Porém, falta desvendar o mal primeiro e “puro”.
13. A virtude não é o bem nem o belo em si, mas por participação. Do mesmo
modo, o vício não é nem o mal nem o feio em si. Quem participa da virtude,
ascende ao bem em si; quem participa do vício, descende rumo ao mal em si. Quem
contempla, apenas contempla o mal absoluto, mas quem se torna completamente
mau, participa do mal: tomba na lama, e decai do humano para o infra-humano.
Trata-se de uma morte da alma, afundada na matéria e encerrada em uma soturna
região.
14. Se pensamos que o vício é uma fraqueza da alma, teremos de inquirir o que é
essa fraqueza e donde provém. Podemos aduzir que a fraqueza se dá nas almas
caídas na matéria, impuras. Como água e óleo, alma e matéria coexistem mas não
se misturam. A matéria é iluminada quando se submete à forma, mas não a
apreende; e a forma, embora presente na matéria, não a suporta, nem a vê, pois
esta última é privação. Esta é a fraqueza da alma: chegar até a matéria, pois
nenhuma das suas potências se atualizam, impedidas pela matéria, que o ocupa
seu “locus”. A matéria é a causa da fraqueza anímica e do vício. É o mal primevo,
por conseguinte.
15. A matéria existe por necessidade ontológica, assim como o mal. Duvidar
disso é duvidar da existência do bem e do desejo por este. O objeto do desejo é
o bem, e da aversão, o mal. Para que desejemos o bem é preciso existir seu
contrário, um outro (=o mal), sem o que nosso desejo pelo bem não seria preciso
nem sincero. É preciso haver o puro bem, assim como um bem misturado ao mal, do
qual possamos participar em vários graus; estas variações determinam a
possibilidade de colaborar com o mal, se dele participamos, ou então com o bem
total, se diminuímos esta participação. Sem isso, não teríamos algo além do Bem
para poder participar. Se voltamos nosso desejo para o intelecto, nos mantemos
livres do contato com a natureza inferior e o mal.
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