Vegetarianismo à luz das tradições de sabedoria (por Daniel Placido)

 

Retomando o tema do vegetarianismo [1], pode-se dizer que a conduta vegetariana tem sido defendida, integral ou parcialmente, como elemento de disciplina espiritual por diversas tradições de sabedoria, tanto no Ocidente quanto Oriente, sejam antigas como o orfismo, o pitagorismo, o gnosticismo, o maniqueísmo, o neoplatonismo, o budismo e o hinduísmo, sejam correntes esotéricas modernas como o rosacrucianismo, a teosofia e a antroposofia [2].

Em uma tentativa de síntese, considero que três são os principais argumentos em defesa do vegetarianismo à luz de uma visão esotérica ou espiritual, ainda que não necessariamente eles sejam adotados de modo simultâneo ou em bloco por cada tradição:

a) Transmigração/Metempsicose. Segundo esse argumento [3], as almas humanas também transmigram para os corpos de animais, portanto, matar um animal, mesmo que não seja necessariamente para comer sua carne -- como, por exemplo, em um ritual religioso--, seria uma prática pecaminosa e impura, porventura uma antropofagia disfarçada. Ora, não seria razoável correr o risco de matar e devorar no almoço o corpo de um animal que talvez hospedasse a alma de alguém da linhagem familiar.

b) Ética da compaixão universal. Como acreditam o neoplatônico Porfírio (Sobre a abstinência, II, 22, 1-3) e os budistas, entre outras tradições, todos os seres vivos, em especial os animais [4], fazem parte da rede universal da Vida, pois são entes sencientes, sendo eticamente necessário evitar provocar-lhes danos ou dor, e sobretudo evitar matá-los ou devorá-los [5].

c) Purificação e ascese. A carne e o sangue animais conteriam elementos impuros, uma essência “selvagem” inerente, e, assim, sua assimilação através da alimentação é negativa para a mente e o corpo do carnívoro, e por isso o aspirante deve preferir a dieta vegetariana, que ajuda a acalmar a mente e auxilia o corpo nos processos internos como a digestão. Mesmo tradições que não defendem a completa abstenção de carne, como o cristianismo e o Islã, não deixam de defender algum tipo de jejum ou abstenção de carne para purificação do corpo e da mente em períodos e situações específicas.

Em uma breve análise da validade desses argumentos, o primeiro é mais difícil de sustentar, já que ele toma a transmigração de almas para corpos de animais como pressuposto, o que, todavia, não é um consenso nas tradições; o segundo, ainda que pareça metafísico, pode ser aceito a partir de uma postura de simpatia e sensibilidade, inclusive sem qualquer implicação religiosa, já que os animais demonstram que são seres inteligentes e dotados de emoções, capazes de sentir dor e sofrimento, assim como prazer e alegria; e o terceiro, conquanto possa soar abstrato (“energia sutil”), parece depender inteiramente de um estado subjetivo, o de sentir-se ou não melhor a partir de uma dieta sem carne.

 

Notas

1- Seleção de passagens e citações sobre o vegetarianismo nas tradições aqui no blog: https://theosophiaperennis.blogspot.com/2022/01/vegetarianismo-e-tradicoes-breve.html

2- Rudolf Steiner disse que, "No futuro, um grande hino de louvor será cantado ao vegetarianismo: as pessoas dirão umas às outras que seus ancestrais costumavam comer carne como se estivessem falando de alguma memória antiga" (Perspectivas para o Futuro, GA 254, trad. L. Maia)

3- Como uma amiga observou, esse argumento valeria mais para os antigos, como os pitagóricos, enquanto os modernos não aceitariam uma regressão do estado humano ao animal.

4-Hindus como Ramana Maharshi consideram até que um animal pode alcançar a iluminação, já que o Self é único em todos os seres, independente da forma assumida.

5- Pode ser acrescentado a isso que o consumo de carne não é uma prática natural, e sim cultural. O ser humano não nasce carnívoro, sendo que pode substituir a carne por vegetais e frutos para suprir suas necessidades alimentícias; mesmo determinadas espécies de mamíferos grandes (como alguns orangotangos) não são carnívoras. Em suma, sendo dotado de inteligência, vontade e empatia, o ser humano pode escolher não comer carne.


Sugestão de leitura

Dossiê sobre Vegetarianismo na Antiguidade, in: Revista Mare Nostrum, v. 10, n. 2019: 

v. 10 n. 1 (2019) | Mare Nostrum (usp.br)


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